No leito de morte veio-lhe visitar o jovem comunista
Nos capítulos finais, a autora conta, seguindo a previsibilidade do gênero literário das "biografias", a morte do escritor. No entanto, como se trata de Machado de Assis, o episódio de sua morte não poderia acontecer sem a interferência de algum elemento estranho, incomum, algo que fugisse da regra do pranto e da reflexão sobre o termo da vida. Não. Aconteceu que, estando o escritor em agonia, tendo ao seu lado uma verdadeira plêiade de amigos ilustres literatos e também de pessoas comuns, que cuidavam dele com o mesmo carinho com que cuidaram de Carolina, falecida há quatro anos, Machado recebeu uma visita curiosa: o fundador do Partido Comunista Brasileiro. Sim. Em uma noite qualquer de setembro de 1908, um rapaz de dezessete anos com um nome esquisito, Astrojildo Pereira, bateu à porta da casa do Cosme Velho e, passando pelos presentes ilustres, entrou no quarto onde Machado de Assis começava a agonizar. Beijou-lhe a mão e o abraçou. Se o escritor, que já começava a sentir a leveza do outro mundo, pudesse se restabelecer naquele mesmo momento e, sentado à escrivaninha, voltar para o seu ofício, poderia, imagino, escrever poemas em sincera homenagem ao moleque todo carinhoso que decidiu fazer-se presente na sua hora derradeira.
As testemunhas do afeto do jovem pelo velho literato foram ninguém menos que Euclides da Cunha, Mário de Alencar, José Veríssimo, Raimundo Correia, Graça Aranha, Coelho Neto e Rodrigo Otávio; além, é claro, das famílias que prestavam auxílio ao moribundo. O moleque Astrojildo, claro, ainda era um adolescente, estava ali como admirador do seu escritor, do seu ídolo. As leituras da obra machadiana poderiam ter despertado o rapaz para um mundo novo, poderiam tê-lo despertado para uma visão mais profunda da condição humana. Não havia nada nele que pudesse dar pistas dos descaminhos da consciência que o rapaz tomaria anos depois quando, em 1922, aos trinta e dois anos, fundara o PCB. É interessante notar como, mesmo aquelas pessoas inteligentes e, aparentemente, enviesadas para um bom caminho, para uma direção na qual as coisas tendem a se mostrar mais nítidas, mais sólidas e presentes, podem tomar rumos inesperados. Por que as pessoas se tornam estúpidas? Por que a inteligência se corrompe? Por que o gênio pode servir ao mal? Essas são indagações que devem ser feitas precisamente para quem, levado pela perda do sentido da vida, como os personagens do Machado, se permitem o mal. Astrojildo, que não estaria ali, no leito de morte do escritor, se não lhe fosse um leitor devotado, fora, com tão pouca idade, impregnado pela frieza do ceticismo e da falta de sentido para a vida presente na obra do Machado. O estilo, irônico e pessimista, deve ter servido de preparo para o materialismo, o cientificismo e o pragmatismo das ideologias que corromperam sua mente.
Mas, em Machado de Assis, os personagens não se entregam ao mal integralmente, entregam-se à dúvida; a uma dúvida permanente sobre o sentido da vida, sobre pelo que vale a pena viver e morrer. Na verdade, porque buscam sempre por uma certeza, ou, pelo menos, porque aparentam buscar por respostas concretas para as angústias da existência, tendem para a única certeza objetiva: a morte. Daí o pessimismo machadiano. Astrojildo que, antes de se lançar em defesa do Comunismo, fora anarquista, deve ter encontrado nessa obra o principal elemento de que precisava para compor a sua filosofia: a vida não tem sentido. Desse ponto até a completa negação da transcendência na realidade, até à fé cega no Estado e na crença de que um sistema político tecnicista ofereceria a solução para todos os problemas da humanidade fora um pulo. Um pulo de moleque. O que Machado de Assis diria se pudesse antever que aquele rapaz que tão afetuosamente beijava-lhe as mãos se tornaria o fundador, no Brasil, do movimento político mais desumano já registrado na História? O Machado, tão observador, tão criterioso, tão atento aos movimentos das criaturas à sua volta seria capaz de conceber os horrores do comunismo? Seria capaz de depositar a fé que ele, durante toda a vida, pareceu negar a Deus, num sistema rígido de controle e estímulo do comportamento humano? Não. Machado compreendeu a angústia da condição humana, experimentou a liberdade criadora e, por isso, não cairia nesse engano. Machado de Assis, apesar de contraditório, antes como indivíduo humano do que como escritor, fora um convicto praticante do maior dos Mandamentos.