A VIDA DE MINHA MÃE - Uma breve história sobre a meritocracia

Sobre a sua história de vida

Minha mãe é a mais velha de oito irmãos, nasceu no sítio no interior do Sertão do Ceará em uma cidade chamada Mucambo, que posteriormente mudou de nome e passou a se chamar por algum motivo "Antonina do Norte" e como ela mesma diz o "pai dela não dava para o trabalho na roça", então ela teve de se virar bem cedo e foi para a roça trabalhar aos sete anos de idade. Com isso ela conseguiu se livrar dos serviços de casa, da fome dos irmãos mais novos e ajudar financeiramente seu pai, sua mãe, seus irmãos e sobretudo a si própria. Foi o ínicio de uma trajetória de luta iniciada com o trabalho infantil. Conseguia comprar suas próprias coisas, roupas e até perfume. Ela tem algumas fotos em Carmorama- eu chamava de binóculo, mas o correto de chamar de monóculo- nestas fotos conheci um pouco dos fragmentos deste passado de pobreza e restrições de todo o tipo, um pequeno túnel do tempo do passado, com beleza mas também uma tristeza e saudades que eu sinto como se tivesse vivido junto este período. E dentre tantas fotos, eu vejo minha bela mãe com seus longos cabelos negros, jovem, com seus vestidos coloridos comprados com seu prórpio dinheiro, fotos do tempo tempo que era adolescente.

Minha mãe amadureceu muito cedo, é uma pessoa muito inteligente. Ela seguia como exemplo seu avô por parte de mãe , ele era fazendeiro. Ah....minha avó era filha digamos, fora do casamento. Ninguém fala sobre isso, mas o primeiro marido da minha bisavó morreu e daí ela teve mais uma filha, mas este homem nunca assumiu ela, ele tinha outra família, rica, diziam que eles tinham dinheiro, meu bisavô era fazendeiro, não dava muita atenção pra família da minha avó não, tanto que minha avó também foi da roça, casaram ela aos 18 anos, ela me disse já bem velhinha na última vez que a vi quando fui visitar que ela nem sabia como ficava grávida e que demorou pra entender como acontecia. Imagina a situação. Chegou a perder a primeira filha que faleceu pouco tempo depois de nascer. Minha mãe é a mais velha de todos depois dessa irmã. E assim a casa pequena, de barro, no sítio ficou cheia de gente com imensa pobreza.

Minha mãe e uma outra irmã foram as primeiras a casarem e a vir pra São Paulo. Mas foi minha mãe quem quis ajudar os irmãos como ela mesma dizia "queria ajudar os mais novos a saírem daquela pobreza", daí então ela começou a mandar trazer eles, foram quatro que vieram. De uma forma que sempre tinha uma ou duas pessoas a mais aqui em casa. Todos deram problemas e a decepcionaram. Até hoje nenhum destes que ela ajudou se ajeitaram na vida, durante muitos anos precisaram de ajuda financeira e psicológica, são muitas histórias que não vou contar agora, hoje vou me ater apenas a irmã mais velha e ao irmão mais novo.

Meu tio foi o último a nascer e também o último a sair de casa. Mas mesmo sendo o mais novo, nem assim a vida dele foi mais fácil. Meu avô não trabalhava na roça, que era o trabalho que havia

pra ele, portanto, como não plantava não tinham o que comer nem o que vender. Minha avó já debilitada, era da casa, mas daquele jeito, pois como já mencionei ela também foi pra roça muito cedo e de lá saiu pra casar e ter os muitos filhos. Não sabia muito sobre arrumar casa e também não tinha dinheiro pra organizar. O que tinha era muito pouco. E assim meu tio se despediu deles aos 15 anos e foi tentar a vida no Rio de Janeiro. Como muitos meninos que saiam do Ceará naquele tempo, o destino era trabalhar no Crediário no Rio. E agora começa a história de terror que meu tio viveu.

Funcionava assim: era um cortição que abrigava muitos rapazes do Norte e Nordeste que vinham em busca de emprego no "Sul". O dono do crediário bancava tudo: água, luz, moradia, alimentação? As mercadorias que eles vendiam e também as cervejas das festas que promoviam aos finais de semana. Os rapazes saiam para vender todos os dias e aos finais de semana tinham estas festas. Era essa a vida, tudo dentro deste esquema. Mas acontece que todos os "benefícios " que mencionei eram descontados do trabalho que os rapazes faziam no crediário. De uma forma que não conseguiam ter salário porque estavam sempre endividados com uma dívida impagável. Daí o sonho de juntar dinheiro para melhorar de vida e ajudar a mãe também minguaram. Foi numa conversa com um colega dele que estava há mais tempo nessa vida que a ficha do meu tio caiu. Ele ia fazer 18 anos e se deu conta que ali não ia ter nada na vida, precisava sair dali e assim o fez, decidiu vir pra casa da minha mãe mesmo sem ser convidado. Não preciso nem dizer que nessa época minha mãe já não queria mais irmão nenhum lá em casa. Eu tinha 8 anos. Ele chegou de surpresa. Quando ligou pra avisar já estava na rodoviária do Tietê. Meu pai foi lá buscar. Nessa época uma outra tia minha ainda morava conosco. Ela vivia saindo e voltando pra casa da minha mãe. Preciso ressaltar que um o

outro irmão da minha mãe e um sobrinho do meu pai também nessa vida, sozinhos em algum do Rio não tiveram a mesma sorte. Ficaram por anos e retornaram loucos para a casa dos pais no Nordeste.

(Abrindo um parentes aqui nesta história: Inclusive o irmão do meu pai entrou em depressão porque este filho dele voltou assim. Ele teve cinco filhos, era o único filho homem. Ele ainda teve que vender um terreno pra pagar a dívida do filho. Antes disso acontecer meu tio era uma pessoa feliz ajudava todo mundo, ajudou muito meus avós e veio duas vezes aqui pra São Paulo. Era uma pessoa muito feliz, proativo e bom de coração. Gostava de plantas e animais, no jardim dele quando era vivo era lindo, ele tinha goiabeira, romã, laranja, banana, ele tinha porcos, vacas e muitas cabras, bodes e ovelhas. Terminou triste, alienado, roubaram seus animais na madrugada, ele caiu e bateu a cabeça numa pedra, morreu no dia 24 de dezembro de 2011. Dois anos antes do meu filho nascer. Quase que dei o nome de Moacir para meu filho. História triste. Quanto ao meu tio irmão da minha mãe, que voltou louco, ainda casou e teve dois filhos, mas não criou nenhum. Estes dois homens vítimas do sistema cruel do crediário, vivem as custas da família, não trabalham e não fazem nada. O sobrinho do meu pai não casou e ainda tem a mãe, está um pouco melhor. Mas o outro tio sofre com os desmandos da mulher e minha avó é falecida não pode mais ajudar ele. Certa vez mandou uma carta pra minha mãe pedindo dinheiro, parecia uma criança , era de dar dó.)

Fechando o parentes porque se eu for contar cada caso de um irmão dá um livro. Preciso dizer que meu pai também ajudou os deles, sempre mandou dinheiro pra eles, mas nem preciso dizer que não ajudava em nada, pois como eles nunca sabiam como viver e administrar as finanças tudo que mandava era pouco e ainda ficavam com raiva dele. Aliás meus pais ajudaram muita gente: primos, irmãos, sobrinhos, inclusive a nós aqui em casa. Mas muitos que não reconhecem pois as pessoas não sabem viver e caminhar com as próprias pernas, é aquela velha história, não adianta dar o peixe, é preciso ensinar a pescar, mas como fazer isto?

Voltando ao caso dos dois irmãos, a mais velha e o mais novo. Meu tio veio para trabalhar com a minha mãe e este foi o único que deu certo. Que coisa não? Exatamente quem ela não queria, pois estava cansada de sofrer com as dificuldades e problemas dos outros dentro de casa. Coincidentemente este meu tio é o único dos irmãos que teve filha única, minha prima que me dou super bem e que é 20 anos mais nova que eu. Todos os outros irmãos tiveram pelo menos dois filhos. Aquela outra irmã que casou na mesma época que a minha mãe teve três. E um outro tio que abandonou a família teve cinco. Minha mãe fez de tudo pra ajudar antes e depois mas não teve jeito. Nem tenho contato com estes primos, sei que vivem em Goiás. Minha mãe até pediu a esposa dele para que não se casasse com meu tio, explicou como ele foi na casa dela e como era com a mãe dele. Falta de aviso que não foi.

Meus avós terminaram no final das contas com muito pouco dos filhos que tiveram. Dois que saíram nunca mais voltaram. Quatro voltaram pra visitar inclusive minha mãe. E dois voltaram pra morar, meu tio que cuida e o que ficou louco para ser cuidado.

Senão fosse toda esta pobreza da família, com meus pais trabalhando e eu filha única poderíamos ter tido uma vida muito melhor do que tivemos, casa melhor, bairro melhor, poderia ter me educado mais e também vivido mais. Meus pais jamais viajaram, foram ou fizeram festas, enfim não se divertiram, apenas trabalharam o tempo todo para sobreviverem. Mas como minha mãe sempre diz, como é que ela ia ser feliz com tanta gente dela sofrendo e vivendo na pobreza extrema que ela conhecia tão bem? Ela quis ajudar, precisava. E acredito que Deus , o destino, a vida os ajudou a tirar tanta força e a multiplicação do que era tão pouco. Pois aquela minha outra tia que casou na mesma época da minha mãe, que não precisou de ajuda, mas não ajudou ninguém também não teve uma vida assim tão feliz... (Fica aí também tema pra outra história)

Infelizmente o tempo mostrou que ninguém pode ajudar quem não quer se ajudar. Pois apesar de todo o esforço, nenhum deles estão bem e porque ainda precisam de ajuda financeira e psicólogica não se dão tão bem com minha mãe. Os natais da família se dissolveram. Mas poderia ser pior se ela ao menos não tivesse tentado. Hoje por causa da idade ela está muito cansada, com muitos problemas de saúde e depressiva, já não quer mais ajudar porque na verdade não pode. Mas ninguém entende isso. Eu mesma me canso das cobranças dela e evito visitas. Mas eu entendo o tamanho desta dor que ela carrega por ter vivido uma vida assim. Mas não se enganem, mesmo assim ela continua uma pessoa muito otimista como sempre foi, muito mais até que eu. Quanto meu pai que é muito família ele evita falar sobre estes assuntos, até porque ele passou muitos anos alienado no trabalho porque precisava garantir a renda da família. Mas certa vez me revelou que gostaria de ter tido mais um filho. E ele sempre "adotou" os sobrinhos como este filho que nunca teve, dois mais próximos que em especial que ele vive ajudando e levando pra lá e pra cá. Nem preciso dizer que a realização dele veio com a chegada no neto, né? Que ele quer como se fosse um filho. A diferença entre tratamento entre o neto e a neta chega a ser escandaloso, não que a trate mal, longe disso. Mas presentes, levar pra passeio- é tudo para o neto. A desculpa é que ela é pequena. Bobagem a menina é muito mais esperta e menos trabalhosa, enfim. Eu sei que ele gostaria até de ter o menino pra ele, mas ele não tem nem saúde nem condições para cuidar de uma criança ainda mais com as dificuldades do meu filho. Lugar de filho é com os pais, infelizmente algumas situações não permitem que isso se realize e tomam outras consequências. E por contar um pedaço disso tudo, toda esta história da minha família, me ajuda a entender e a compreender o mundo pois são através de nossas próprias narrativas que construímos nossa visão de mundo . Muitas pessoas passaram por dificuldades semelhantes, não iguais, porque cada pessoa é única e cada dificuldade única também. Mas as dificuldades causadas pela desigualdade social tem as mesmas consequências em todas as famílias, pois tira a renda, dificultando a qualidade de vida e até mesmo a sobrevivência. Os filhos quando pequenos não enxergam o sofrimento, porque o jovem tudo suporta. A conta chega com a idade. Todos pagam por ela, agora a forma como vai encarar isso é de cada um. Aínda é possível ser feliz depois de ter vivido histórias tristes, mas este caminho só você pode definir como vai escolher. Se você vai tirar uma lição e ensinar com sua história de vida ou vai se afundar na lembrança triste dela. E sua história de vida é sua e da qual não deve se envergonhar, pois não existe trajetória isenta de altos e baixos, a não ser que você tenha nascido na família do Dória. Mas se eles estão lá é porque a desigualdade no Brasil permite que poucos tenham tudo e explore os outros enquanto muitos não tenham nada e tenham que se permitir ser explorados como meio de sobreviver. O que vai mudar apenas é o modo da exploração. Meu pai por exemplo ficou 35 anos trabalhando numa "firma", sem atrasar nem faltar, aprendendo a lidar com diversas situações para sobreviver e garantir a sobrevivência. Dois irmãos dele trabalharam na mesma empresa, ou seja, tiveram as mesmas oportunidades mas...os dois caíram no álcool de vez. Meu pai também bebia mas com bem menos intensidade, tanto que depois que aposentou, parou. Mas os outros dois irmãos não tiveram a mesma sorte, um deles ficou com sequelas graves e hoje vive entre internações e remédios, não responde mais por si. Um outro teve derrame e ficou com sequelas graves ,e isto já faz 20 anos. Ambos se tornaram um peso enorme para a família, um ficou com as filhas já que a esposa faleceu, o outro com a esposa que também faleceu agora recentemente devido a Covid-19. Histórias que começaram juntas, do mesmo ponto, tiveram uma vida e uma trajetória difícil , avançaram pouco na linha do sucesso, e terminaram diferentes, por pequenas decisões, por pequenas atitudes. Histórias de filhos que tem que tomar as redéas da sua própria vida na escuridão das escolhas nas curvas do destino. E infelizmente isso que acontece quando os pais tem muitos filhos e não tem condições de cuidar. Os filhos tem que saber se virando e isto se torna o melhor que eles podem fazer por eles e pelos próprios pais. Eu conheço de perto esta realidade de todas as pessoas queridas que fizeram e fazem parte da minha vida. E essas consequências, dessas vidas, ecoam não somente na vida deles próprios, mas dos descendentes, de todos ao redor. Pois as as pequenas escolhas que fazemos nas nossas vidas mudam nossas vidas e também as dos outros.

Mariana Montejani
Enviado por Mariana Montejani em 11/10/2020
Reeditado em 11/10/2020
Código do texto: T7084921
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