Não me aborte - Uma história verídica

Estou aqui, neste lugar escuro e aconchegante, sentindo um batuque que ainda não consigo identificar ao certo. Sinto-me protegido.

É como se seu estivesse envolvido em uma bolsa com um líquido quente. Não é muito espaçoso, mas eu já consigo me esticar um pouco e quando isto acontece, sinto-me acariciado.

Às vezes ouço vozes. Não sei exatamente de onde elas vêm e entendo que estão falando de mim.

Uma das vozes tem um tom mais agudo e ao mesmo tempo protetor; enquanto ela canta – acho que para mim – me acaricia de longe e parece dizer que me ama.

A outra voz é um pouco mais grave, sem ser agressiva e demonstra preocupação com minha provável chegada. O dinheiro será suficiente para comida, higiene e outros cuidados?

Começo a perceber que ela me ama, deseja que eu saia desse meu lugar quentinho para ficar mais perto dela, enquanto o outro, o da voz grossa, sugere que é melhor interromper, adiar minha chegada.

Dizem alguns que eu ainda não sou uma vida, individualidade ou pessoa – mas como não? Eu sinto, penso, choro, sorrio e me emociono...

Venceu o amor e a persistência e eu cheguei ao mundo numa família de migrantes como tantas nesta cidade que fiquei sabendo ser São Paulo.

Aquela voz mais aguda e doce, descobri que é de minha mãe que lutou para eu nascer, enquanto a voz mais grossa é de meu pai. Não tenho mágoa dele, embora ele não quisesse minha presença neste mundo.

Cresci com poucas facilidades como tantas crianças que nascem por pais semialfabetizados e com persistência, disciplina e educação cheguei à maturidade com a chance que me foi concedida.

Entendo todas as dificuldades de se educar estes pequenos seres nos dias atuais. As violências praticadas contra as mulheres – nossas irmãs –, o livre-arbítrio em aceitar ou não aceitar a condição materna, a ausência, em muitos casos, do genitor, fugindo da responsabilidade compartilhada.

Pergunte-se, entretanto ao ser em formação no ventre materno: "–Você deseja nascer ou prefere ser abortado?"

Certamente se me fizessem esta pergunta quando eu ainda era um feto, minha resposta seria: "–Sim, eu quero nascer."

Existem muitos métodos anticoncepcionais à disposição de homens e mulheres. Nas ruas, estações de metrô, postos de saúde, as camisinhas são distribuídas de graça.

Por amor, não me matem. Eu sou um feto e quero ter a chance de pelo menos dar um suspiro fora do útero materno e depois partir, se assim for necessário.

#bispoeta