Colcha de retalhos
Mamãe, décima quinta filha de portugueses,
nascida em uma cidadezinha no interior do estado do Rio de Janeiro.
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A moça triste, de olhos brilhantes,recém-formada em Serviço Social, encantou o advogado jovem e idealista.
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Papai, filho de imigrantes italianos falidos
que vieram tentar a sorte em Minas Gerais.
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Duas pessoas cheias de sonhos e planos,
dois destinos que se cruzaram,
dois retalhos costurados à imensa colcha chamada vida.
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Eu, a terceira filha de uma família de classe média.
Filha desta cidade.
Nasci em plena década de 70, em meio à ditadura militar,
tempos de medo e silêncio,
tempos que me ensinaram a crer num amanhã e ter esperança,
apesar de tantos pesares.
Tempos apocalípticos, com toda uma aura de “fim de mundo”
, pois faltava pouco mais de duas décadas para o próximo milênio.
Nasci no século passado. Século das Guerras e Revoluções.
Ao resgatar minha memória, resgato o passado de uma cidade, de um espaço/tempo que fez parte da minha vida, tendo com ele interagido intensamente.
Resgato também o passado de toda uma geração
da “cidade vizinha” .
“Cidade dormitório”. “Cidade sorriso”.
E que, no início do século XXI possui em sua geografia um endereço internacional – O Caminho Niemayer.
Desenlaço os fios que costuram o passado, emprestando à narrativa, minha história de vida pessoal.
Repleta de dores e alegrias, medos e coragem –
universo complexo do mundo infantil.
É a versão adulta sobre a experiência
da menina que um dia fui.
É a versão resgatada da infância de muitas meninas que,
como eu, iam à festas,
brincavam em seus quintais,
iam à escola...
Meninas e suas práticas cotidianas, hábitos e desejos.
Meninas e sua vida familiar, da classe média no
Estado do Rio de Janeiro no final do século XX.
Memórias da infância emergindo
através da releitura do que fui.
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Tempos que o americano, em sua hegemonia napoleônica, inicia a colonização de outros países e do próprio espaço
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Talvez pela derrocada do socialismo no leste europeu...
Pelos muros que caíram...
Pelas Alemanhas que se unificaram...
Devido aos cometas Halley que passaram...
E a Aura da desesperança de vida no planeta Terra...
Incerteza e Mistério.
O fato, é que minha infância foi povoada por seres extraterrestres, discos voadores, viagens interplanetárias.
Eu e meu irmão,
dois companheiros inseparáveis de aventuras.
Crianças urbanas que éramos,
nossas brincadeiras restringiam-se
em alguns metros quadrados do nosso quintal.
Quintal, que hoje meu filho não tem.
Mas que foi de fundamental importância
em minha vida de menina.
Tempos de ARENA e MDB, Médici e AI 5,
Copa do Brasil e “Salve a Seleção”.
Época em que passava “O Mundo Animal”
e “Amaral Neto, o repórter”.
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Corrida Espacial.
Brincadeiras com meu irmão.
Ascensão e queda do socialismo no leste europeu.
Chorava para não ir a escola.
A Alemanha dividida torna a se unificar.
Dona Aline tomando tabuada.
Retrocesso ao liberalismo..
Estudos de piano clássico.
Fusão. O antigo Estado da Guanabara
é agora Estado do Rio de Janeiro.
Papai se torna Procurador do Estado do Rio de Janeiro.
Mamãe se torna assessora da Fundação Leão XIII
.Abertura Política, Diretas Já,.
Viagem para Disney. Viagem para Europa.
Constituição de 1988 e Lei de Diretrizes e Bases de 96
Direito na UERJ.
Desistência.
Collor, projetos de lei e privatizações
Licenciatura em Letras. Morte de meu pai.
Perseverança em viver da minha mãe
sem o grande amor da sua vida.
Trabalho na Futurekids.
Adeus às Torres Gêmeas
Nobrecar: Meu nome no contrato social
e a ausência de mim mesma
durante os seis anos em que lá trabalhei.
Sarney e Fernando Henrique
Meu casamento e nascimento do meu filho Matheus.
Mamãe é apresentada ao patchwork ou quilt.
Genocídio americano.
Curso no Instituto Superior UNILASALLE
Morte de minha mãe. Que foi embora apressada, sem avisar.
Presente dorido, mas um futuro, que creio,
repleto de expectativas e possibilidades.
Papai e mamãe foram fios que formaram a tessitura de um ser.
Linhas que se entrelaçam, enlaçam compondo o tecido que faz parte de mim.
Estive alheia a uns e atenta a outros enredos da minha história.
Nasci, vivi e cresci no mesmo século, que Hobsbawn
define como Tempos Interessantes.
Fragmentos do que aconteceu.
Retalhos do passado que agora aprendo a costurar.
Sinto-me artesã, tecelã, bordadeira das linhas e fios que entrelaçam a vida.
Enxerguei a dimensão complexa do mundo,
através dos remendos e quilts da minha mãe.
Ela nem sabia que realizava um ato mágico, envolvido em mudanças, transformações, construções e reflexão.
A colcha de retalhos que minha mãe fazia era também um ato simbólico, representando o resgate da autoria, do organizar e do fazer.
Através daquela colcha, mamãe costurava seu anseio de revisitar acontecimentos passados,, para assim, superá-los.
Em seus trabalhos ela foi além de representações,
tendo imergido em suas próprias emoções e sentimentos.