Prévia do livro: Um dia de cada vez memorias de uma família ( Primeira longa viagem de bicicleta)

PRIMEIRA LONGA VIAGEM DE BICICLETA

Para girar a vida, nada melhor do que ser amante das bicicletas. Busquei-as para fazer parte de minha vida e é um meio de transporte mais viável, econômico e salutar. Os caminhos para percorrer são íngremes, há curvas, muitos trilhos, rodovias, sol escaldante e estradões cheios de cascalho, ondulações de costelas, cheiro de capim das fazendas, silagem, mau cheiro de animais mortos e de granjas rurais, mas é um caminho para chegar a um ideal que é a longevidade e qualidade de vida, com o privilégio de estar em contato com a natureza, verdadeiro ansiolítico natural para os depressivos, ansiosos, solitários, esquizofrênicos e adictos em recuperação.

Hoje, mesmo com os acidentes de bicicleta que houve em minha vida estou ciente de que a mesma veio me levar muito mais além do que imaginava. Prefiro me arriscar e acreditar que preciso encontrar na bicicleta o propósito de restaurar, acalmar a alma, em vez de estar pedindo socorro para sobreviver, em um mundo acelerado cheio de competitividade e pessoas destruídas pela compulsão e pelo sedentarismo. Essa é a maneira de não perder a razão e seguir um caminho sereno e digno de viver.

Depois de tudo, estou mais consciente, experiente e pai de família. Continuo a andar de bicicleta, além de resgatar a dopamina, serotonina e o prazer de estar em contato com a natureza e o bem-estar do exercício aeróbico que a mesma nos propicia. A cada dia o amor por elas vem aumentando muito mais em minha vida, oxigenando não só meu sangue e minh’alma também. É o momento em que posso saltar para o suspirar do bem viver. Eu me entrosei em um grupo de ciclistas que buscam quase os mesmos ideais do que eu.

Para fazer um pedal mais seguro, juntos podemos compartilhar nossa história de vida em que entendemos que os problemas familiares e as soluções para progredir são os mesmos. Ouvindo a história de cada um, podemos aceitar mais os acontecimentos da vida. Porém, quando tiro o dia para mim, pedalo de 30 a 40 km para me distrair, me relaxar, fazendo, assim, um “reset” no meu cérebro e alma, mais uma soma do bem de pedalar, pois sempre há umas escolhas e caminhos novos para percorrer e conhecer.

Todo ano, em agosto, grupos de ciclistas se reúnem para fazer o percurso de Patos de Minas a Romaria, rumo ao Santuário de Nossa Senhora da Abadia de Água Suja, cuja tradição cultural permanece há séculos com os peregrinos.

A distância pela estrada entre as cidades de Romaria e Patos de Minas é de 149 km. Em linha reta, a distância é de 117 km. Crentes e descrentes vão em busca de seus ideais, seja para pagar promessas ou fazer uma aventura. Nessa época, os dias são muito frios, tornando o percurso mais complicado de realizar.

A minha primeira ida a Romaria foi muito legal. Um dia antes de ir, comprei um mini fardo de pão de cachorro-quente com 10 pães, goiabada, uvas passas, barras de cereal, banana e iogurtes, para recompor a energia.

Montei um cálculo de delta e tempo. Essa distância foi calculada levando em consideração o percurso pela rodovia e não contando com as condições adversas que podem ocorrer no percurso, como paradas nos pontos de apoio para fazer um lanche, hidratar, regulagem na bicicleta, etc.

Com velocidade média de 20 km/h, quanto tempo eu levarei para percorrer 149 km?

V= 20 km/H

Delta= 149 km

Delta T=?

20= 149

1= Delta T

Delta= 149/20=7.45h

Ida e volta para chegar mais ou menos às 19h15. Dava para eu ir e voltar, mas não sabia que os companheiros que iam não davam conta de cumprir a meta de ir e voltar em um dia. Marcamos para sair às 3h, partindo da oficina de bicicleta onde estava agendada a saída; conseguimos sair às 3h30, com um frio muito grande que quase queimava a pele, tamanha a intensidade da temperatura. A maioria ia de Mountain Bikes, pneus 1.0. O Rogério com uma bicicleta Speed. Só eu e Rômulo com pneus de trilha. Numa avenida, nosso colega Rômulo estava na pista central e foi passar para a pista em que todos do grupo estavam; ao virar o guidom para fazer o retorno à direita e juntar-se a nós, a roda de sua bicicleta se soltou e ele caiu no chão, com isso abandonando o percurso. Seguimos nosso destino a Romaria, com muita determinação. Quando chegamos ao Posto Patão, na Rodovia BR-365, km 407, próximo ao bairro Planalto, fiz um “Sprint”, no sentido de correr mais, largando todos para trás. Chegando ao barracão onde fica o bebedouro de água, não enxerguei uma corrente que estava fechando a entrada. Entrei com ela e tudo no barracão. Graças a Deus, a corrente estava amarrada em um arame. Com a velocidade, ela bateu em meus antebraços, fazendo com que se soltasse facilmente do suporte em que estava fixada e amarrada com arame. Foi o primeiro grande susto.

A turma chegou, cada um foi enchendo as “Camelbaks”, mochilas de hidratação. Para fazer um percurso de longa distância devemos ter atenção com a hidratação, estar sempre atentos à quantidade de água que estamos levando para não correr o risco de ficar sem a reposição da mesma, os riscos de sofrer uma desidratação, cãibras, tonturas, perda de força muscular, que podem até levar à morte.

Seguimos a viagem, chegando perto da ponte do Rio Paranaíba. O tempo ainda estava escuro. Um ônibus-leito aproximou-se de nós no momento em que estávamos sobre a ponte, que é estreita, quase a conta de passar. Ele foi puxando a gente, aumentando nossa velocidade. Olhei para o colega da frente, e o vento estava puxando-o para as monstruosas rodas. Foi um momento de adrenalina, medo e milagre. Ufa, que susto levamos! Olhamos um para o outro e pensamos que pudesse ser um sinal. Veio o outro colega, Adão, que disse: “Não é só um sinal, são três. Vocês se lembram quando, no início, o Rômulo foi vítima de uma falha mecânica. A pressão da roda soltou, quebrou, e ele caiu. Se tivesse chegado até aqui, esse episódio teria sido diferente. O outro sinal foi que Fábio abriu a entrada do barracão, onde havia uma corrente amarrada a uma tirinha de arame. Se fosse um cadeado, a consequência seria pior. Quero que você se lembre, Fábio, que Deus está te alertando de que Ele existe. Pare de achar que viemos ao mundo por acaso ou pela teoria do ‘big bang’”.

Assim, fui refletindo sobre o sermão. Chegando perto da cidade de Guimarânia, a turma já estava cansada, esgotada, alguns sentindo cãibra.

Todos pararam e disseram que não conseguiriam dar sequência à viagem.

Entrei no meio da roda e pedi que os colegas se hidratassem mais e fizessem alongamentos, comessem os sanduíches de goiabada com uvas passas para reporem as energias. Dali por diante, todos se animaram, lancharam e começaram a sentir a diferença das informações que passei.

Só o Japa justificou a desistência. Ele pegou o ônibus em Guimarânia. Sua bicicleta foi no bagageiro. Eu olhava para uns, suas bocas estavam tremendo. Um outro esquentava a boca roxa com as mãos. Eu morria de frio. Acabamos de nos alimentar, fizemos alongamentos e demos sequência à viagem. Percorremos vários caminhos. Nos acostamentos, peregrinos andando a pé. Vimos pessoas com os pés cheios de bolhas e sangrando. Outras eram carregadas por terem ultrapassado seus limites. Eles serviam de exemplo e coragem para todos, aumentando o estímulo, a raça. Continuavam pedalando, pedalando. Antes de chegarmos ao ponto de apoio aos peregrinos, havia uma subida bem íngreme. Alguns de meus colegas começaram a rezar e pedir desculpas por não estarem dando conta de seguir a viagem, sempre com o pensamento de desistir da viagem. Decidi usar mais uma estratégia. Ao perceber que o Rogério tinha um preparo melhor e já pedalava há tempos, chamei-o no canto e perguntei qual que ele puxaria primeiro. Ele se assustou e me devolveu a mesma pergunta. Respondi que puxaria qualquer um. Um colega se segurou em minha mochila e comecei a puxá-lo com uma velocidade razoável. Outro fez o mesmo na mochila do Rogério. Seguimos até o fim da subida. Voltei e puxei mais um. Puxei o último colega até chegar ao ponto de apoio, na beira da estrada, onde se acolhem todos peregrinos. São barracas com vários setores, com massagistas, dormitório, refeitório para o almoço, caldos no jantar, sucos, água, frutas, pães, musarelas, etc. Dali em diante, não desistimos. Quando chegamos ao trevo de Romaria, paramos para beber um suco de laranja dos ambulantes. Foi mais um momento difícil para mim, pois comecei a sentir cansaço. Fui conversando comigo mesmo e trabalhando o psicológico para completar o percurso. Ficamos um longo tempo parado para beber água e suco de laranja. O sangue esfriou e fomos mais fortes do que a distância. Chegamos à porta da igreja, e meus colegas começaram a subir as escadarias de joelho, alguns de pé para pagar promessas e agradecer pela devoção, milagres recebidos da santa Nossa Senhora da Abadia.

Enquanto eu vigiava as bicicletas para os companheiros de peregrinação, surgiram vários pedintes querendo esmola, alguns vendendo objetos religiosos. Depois, foi minha vez de subir a escadaria de joelho. Fui meio indeciso, pois permanecia “ateu” naquela época. Fui só por aventura. Subi de joelhos, cheguei em frente à santa Nossa Senhora da Abadia, peguei nas fitas que ficam nos pés dela, comecei a chorar e pedir desculpas por minhas descrença religiosa. Dali em diante, deletei a apologia de ser cético a Deus e a Santos.

Meus colegas de pedal tinham o costume de chamar-me carinhosamente ou ironicamente de “andarilho”. Eu pesava 65 kg, tinha os cabelos cacheados, grandes, treinava todos os dias, pedalava de Patos de Minas a Lagoa Formosa, uma distância de mais ou menos 53.2 km, ida e volta, percurso médio para treinar e para realizar o sonho de viajar de Patos à Bahia. Ao passar por mangueiras localizadas às margens da rodovia, eu parava para chupar algumas mangas. Porém, as ironias do destino não me permitiram cumprir a meta de viajar 1.061 Km. Tive que mudar os planos de vida, depois de ter sido vítima de roubo.

De tanto perguntar onde estava minha fé, fui encontrando-a aos poucos. Foram muitos os acontecimentos para chegar a um ponto de mudar a maneira de viver. Não sou santo, mas aprendi que, a cada dia, podemos fazer uma reparação de nossos defeitos de caráter e ter mais aceitação. Mesmo assim, surgem novos fatos sociais e defeitos de caráter aos quais devemos ter muita atenção para não mudar o destino. Hoje, posso falar que sei lidar mais com os meus impulsos, delírios, paranoias e mania de perseguição, fazendo com que parte da sociedade me aceite do jeito que sou.

Quando sinto o desejo de ajudar, vejo em mim e no ser humano que somos capazes de ajudar e de ser ajudados, um dia estendemos as mãos, sabedores de que, algum dia, precisaremos de que alguém nos faça o mesmo

Fábio Alves Borges

Fábio Alves Borges
Enviado por Fábio Alves Borges em 11/04/2020
Reeditado em 17/09/2021
Código do texto: T6913307
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