UMA PERSONAGEM AO LADO

Às vezes emprestamos a escrita para alguém que está ao lado e dela precisa. Em retribuição, ganhamos uma personagem. Justa troca.

Contar a história de uma pessoa, organizar-lhe os fatos, amores, tropeços, estradas e tudo de forma ordenada, cronometrada, não é tarefa fácil. Nem mesmo a mente da proprietária, com todo seu potencial de memória, o consegue fazer bem.

É o caso de Beatriz, de sobrenome Pereira dos Santos, de quem farei essa pretensa biografia que será verdadeira até onde me permita ir o zelo por sua privacidade. Vejo-a confusa, traçando curvas com os fatos, alguns esquecidos, outros completamente perdidos,enquanto outros exacerbados, entre causas e efeitos sem o critério da razão. Certamente, dessa forma, não chegará a algum lugar. Conheço-a bem, por isso proponho-me ordená-los. Pôr tudo aqui em linha reta, pelo menos tentarei, pois com pessoas como ela, imprevisíveis, por mais que se tente, nem com uma régua se consegue alinhar só com s fala. Já tentei pessoalmente, foi pior. Talvez porque as palavras faladas se perdem no vento enquanto as que ficam guardadas acabam indo também com o tempo. Pois isso já não acontecerá com essas, que ficarão aqui escritas, seladas.

Estarei dessa vez a sua espera com o material pronto nas mãos, escrito, todo ele ordenado, cronometrado e interpretado, visto que ela considera minha opinião. Abrirei seus olhos, abrindo-lhe ao mesmo tempo as suas mãos que tomarão posse de sua história.

Como consequência e em troca, ganho a personagem. Pronta.

Certo é que construirei fictícios endereços e nomes. Inventarei alguns casos pequenos para confundir, ela entenderá a intenção. Tudo para que não lhe devassem a vida e a possam reconhecer. Mas a história será fiel à criatura que não é obra minha. De modo que, assim, e mesmo assim, camuflada, ela se encontrará. Cumpro a tarefa e ganho a inspiração.