COMO CÃO ATROPELADO
Este texto é seqüência do texto SOLIDARIEDADE CONTRA A FOME.
Pensei em tomar um café preto enquanto o policial rodoviário não me chamava para uma carona que, imaginei que, por ser arranjada por ele, seria longa, possivelmente até o Rio Grande do Sul. No restaurante do posto de combustíveis ao lado do posto da Polícia Rodoviária vi, sentado junto a uma mesa distante da porta, um hippie, com todo um arsenal, fazendo bijuterias. No momento ele fazia um brinco pendente incrível, com uma habilidade encantadora e uma serenidade inabalável. Por ser hábil desenhista desde que me lembro do meu pai e da minha mãe, e minhas lembranças são muito remotas, sempre me encantei pela arte, pelo belo e pelas formas simétricas. O pingente que ele fazia era assim, perfeito, feito de arame de latão usando apenas um alicate de ponta cônica. As partes da obra eram apenas retas com voltas e espirais nas pontas, seja para ligarem-se umas às outras ou para compor um conjunto harmoniosamente adornado. Futuramente eu veria que aquele tipo de bijuteria de latão era comum, inclusive nas calçadas de São Leopoldo, minha cidade natal, na região Metropolitana de Porto Alegre. Todavia, até então não tinha visto nada tão hábil nem tão lindo, tampouco tinha visto alguma vez um bicho grilo, não que eu me lembrasse, pois em 1981 eles já eram raros. Por causa do hippie e de sua arte esqueci-me, inclusive do café, olhando-o fazer seus adornos fantásticos.
O tempo passou rápido e, súbito, alguém do restaurante veio me avisar que o policial me chamava ao posto de polícia. Meio hesitante, deixei a cena “inusitada” para ir verificar o por que de o policial me chamar. Chegando ao posto, vi que do outro lado da rodovia havia estacionado um caminhão Fiat branco pequeno, tendo por sobre o chassi sem carroceria outro caminhão igual. O policial me disse que me conseguira uma carona até Novo Hamburgo, cidade próxima a minha, cujo centro dista doze quilômetros do centro de São Leopoldo, onde eu morava. Então me conduziu ao caminhão, me apresentando ao motorista, que mandou que eu embarcasse. No caminho, o motorista, que não devia ter mais que trinta anos, contou-me que era baiano, que estava conduzindo os caminhões desde a fábrica até a empresa de transportes Expresso Rio Grande São Paulo, em Novo Hamburgo, mas que não podia me levar por longa distância, sendo que haviam muitos fiscais da empresa pelo caminho. Ele apenas tinha concordado em me dar carona para não contrariar o policial rodoviário, por isto me levaria até Registro, distância que daria uns cem quilômetros, como calculou. Tranqüilizei sua consciência agradecendo pela carona de cem quilômetros, dando-lhe certeza de que estava mais do que bom, haja vista que desde que saíra de São Paulo não tinha conseguido mais do que uma carona de um quilômetro. No Município de Registro, ele me deixou em frente a um posto de combustíveis que tinha um coqueiro na frente e me deu duas esteiras de junco, para que me servissem de cama. Também deu um coco verde, dizendo que tudo isso eram lembranças da Bahia.
Após despedir-me, dei uma volta pelo posto para ver se entre os caminhões não via algum com placa do Rio Grande do Sul. Estacionado ao lado da borracharia, havia um Mercedes baú de dois eixos, cuja placa era de Novo Hamburgo. Vendo pelo retrovisor que o motorista estava na cabina, junto a porta, perguntei-lhe se poderia me dar uma carona até Novo Hamburgo. Ele respondeu que sim, mas com a condição de que eu ficasse a cuidar do caminhão por três dias, sendo que o diferencial quebrara e ele teria que levá-lo até São Paulo para concertar e isto custaria três dias. Na tardinha daquele mesmo dia ele foi com o diferencial na caçamba de uma pick up, deixando o caminhão trancado e eu do lado de fora, ouvindo entre os trabalhadores da borracharia que três dias para consertar o diferencial do caminhão era lorota, sendo que levaria mais de uma semana.
Já envergonhado de tanto pedir algo para comer no restaurante do posto, no terceiro dia sai a passos pela BR 116, andando alguns dias a média de cinqüenta quilômetros por dia, pedindo comida nos restaurantes dos postos de combustíveis, dormindo nas varandas das borracharias quando podia, ou em alguma capoeira a beira da rodovia.
Certo dia cansei de caminhar e o sol desapareceu, deixando o dia um pouco sombreado, mas não anoiteceu, por isto segui caminhando. Já muito cansado, mas parecendo ainda crepúsculo, pois a luz ainda possibilitava ver um clipe no chão, resolvi estender as esteiras e dormir, pois por certo logo anoiteceria. Depois de um longo sono, abri os olhos e vi que ainda não anoitecera, mas o crepúsculo prevalecia, caindo então uma garoa. Todavia, vendo que a noite não caia e sendo que eu estava refeito, como se tivesse dormido uma noite inteira, imaginei que estivesse amanhecendo, por isto fui para a estrada, que estava muito pouco movimentada para aquele começo de manhã, que já parecia alongado. Seguindo pelo acostamento, cercado de um bananal que se perdia de vista, vi vindo da frente um caminhão a ultrapassar outro que vinha pelo acostamento. Ouvi de trás de mim o ronco de um terceiro caminhão que calculei que se encontraria os dois da frente a altura de onde eu estava. Sendo que se encontrariam os três lado a lado na pista, que era de mão dupla, cheguei-me mais para a beirada, pois o caminhão de trás viria sobre o acostamento onde eu caminhava. Quando ele passou por mim, girei sobre a grama molhada, recebendo um forte impacto no cotovelo direito, então rolei pelo aterro da rodovia abaixo, uns quatro metros, até parar num valo cheio de macegas molhadas, mais altas do que eu. Meio aturdido, como se tivesse desmaiado, olhei para a rodovia na esperança de ver o motorista do caminhão vindo me socorrer. Nem sinal de uma alma viva, a não ser eu mesmo, todo molhado e com o braço direito imóvel, inchando rapidamente, me sentindo um cachorro atropelado e desprezado.
Chorando, frustradíssimo e com muita raiva pelo pouco caso do motorista, subi o aterro de volta para a rodovia. No acostamento, encontrei apenas uma das esteiras. A outra deve ter ido enganchada nos ganchos da carroceria do caminhão. A Princípio não entendi como podia ter batido no meu braço direito, se caminhando no acostamento a margem esquerda da estrada era o esquerdo que ficava para o meio. Depois percebi que os ganchos da carroceria do caminhão deviam ter enganchado nas esteiras, que eu carregava enroladas sob o braço esquerdo, me fazendo girar cento e oitenta graus, quando então os ganchos mais atrás da carreta devem ter se chocado com o braço direito, deslocando-o.
Sem ter a quem apelar, sendo que não adiantava também ficar chorando no meio do caminho, como dizia Erasmo Carlos naquela canção, o negócio era sobreviver e tocar a vida para frente. Afinal, o acidente não fora tão grave, haja vista que permanecia vivo e, excetuando o braço, que estava muito inchado e imóvel, não tinham nem um outro arranhão. Então peguei uma cacharel branca, que eu levava amarrada na cintura desde que saíra de casa na metade do mês de novembro do ano anterior, e fiz uma tipóia, com que mantinha o braço suspenso e imóvel.
Wilson Amaral