O DOM QUIXOTE DO MAR

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Todos sabem que durante as guerras afloram os instintos mais baixos transformando muitos seres humanos em feras mas, felizmente, não todas as pessoas são iguais e os eventos narrados nesse texto vão relatar um dos fatos mais complicados e emblemáticos de toda a história da guerra submarina durante a Segunda Guerra Mundial. Veremos como o espírito de solidariedade entrou em conflito com as impiedosas necessidades bélicas e como, apesar das circunstâncias dramáticas, alguns Homens (com o “h” maiúsculo) souberam antepor a piedade ao sentimento de ódio que prevalecia naquela época ferrenha quando o imperativo geral era exterminar os inimigos sem pena, como se se tratasse de insetos nojentos.

A história começa no mês de agosto de 1942, quando o Comando supremo da frota submarina da Alemanha (BdU) havia organizado a operação Eisbar (Urso Branco), uma ofensiva contra os navios dos Aliados que transitavam nas águas do Atlântico Meridional rumo à Inglaterra. Para a realização dessa empresa fora criada uma força-tarefa composta por quatro U-boote de ataque, ou seja, o U-68, o U-172, o U-504 e o U-156 comandado pelo tenente Werner Hartenstein.

Enquanto os submarinos alemães estavam se aproximando às costas da África Ocidental, o navio passageiro Lacônia, um velho transatlântico da Cunard White Star Line de 19.695 toneladas, sob o comando do capitão Rudolf Sharp com 463 oficiais e tripulantes, transportava 286 passageiros britânicos, 1.800 prisioneiros de guerra italianos, 103 guardas poloneses e 80 mulheres e crianças, parentes de militares, que estavam retornando à Inglaterra. Apesar de ter sido projetado como navio civil, o Lacônia transportava munições e armamentos, sendo também equipado com um canhão de 152 mm mais 13 de calibre menor, fato isso que, de acordo com as leis de guerra, o tornava um alvo legítimo. Com efeito, na noite do 12 de setembro de 1942, o transatlântico, navegando com as luzes apagadas e ziguezagueando para evitar os ataques de submarinos inimigos, estava localizado perto da ilha de Ascensão. De repente foi torpedeado pelo U-156, afundando em menos de duas horas.

A maioria das vítimas foi registrada entre os prisioneiros italianos e os sobreviventes fizeram um trágico relato do afundamento. Os italianos haviam sido trancados em celas no fundo do navio e, quando o mesmo foi atingido pelo primeiro dos dois torpedos, as sentinelas polonesas se recusaram de abrir as gaiolas de ferro. Enquanto a água invadia a estiva, os homens enjaulados tiveram que se jogar contra as portas, derrubando-as, mas foram impedidos pelos guardas que não hesitaram em atirar e usar suas baionetas para segurá-los. Estima-se que cerca de 1.400 prisioneiros morreram afogados nos porões do Lacônia e os outros que conseguiram chegar ao convés superior ainda tiveram que lutar para obter um colete salva-vidas e entrar nos botes; aconteceu até que os guardas poloneses cortassem os dedos daqueles desaventurados que tentavam se agarrar aos barcos. Foi um ato de barbárie que, de regra, não se encontra nos livros de história; mesmo assim o pior ainda estava por vir.

Às 4 horas da manhã do dia seguinte o comandante Hartenstein dirigiu-se no meio dos destroços do Lacônia, que ele achava ser um meio de transporte de militares ingleses; entretanto ouviu gritos de socorro em italiano e vozes de mulheres misturadas com o choro das crianças. Estarrecido, enviou imediatamente uma mensagem em código ao BdU, chefiado pelo almirante Karl Dönitz, pedindo instruções. Os oficiais do Comando se dividiram em dois grupos: uns diziam que jamais o comandante de um U-boot deveria pôr em risco o seu navio e a sua tripulação; outros frisaram a necessidade de ajudar os náufragos, posto que muitos deles eram soldados que combatiam ao lado da Alemanha.

Enquanto no BdU se debatia sobre a forma melhor de lidar com essa estranha situação, Hartenstein tomou a iniciativa de socorrer as vítimas hospedando-as, em pequenos grupos, no convés do submarino e distribuindo alimentos, cobertores, água e medicinais. Uns feridos, junto com umas mulheres com seus bebês, foram hospedados a bordo da embarcação. Duas horas depois, não tendo ainda recebido uma ordem clara e definitiva do BdU, o comandante Hartenstein tomou outra iniciativa e derramou, pela rádio e nas frequências utilizadas pela Royal Navy, o seguinte pedido de socorro:

IF ANY SHIP WILL ASSIST THE SHIP-WRECKED LACONIA CREW I WILL NOT ATTACK HER, PROVIDED I AM NOT BE ATTACKED BY SHIP OR AIRFORCE. I PICKED UP 193 MEN – 4° 52’ SOUTH, 11° 26’ WEST. GERMAN SUBMARINE.

“Se algum navio irá dar assistência à tripulação do Lacônia afundado, não o atacarei, desde que não seja atacado por navios ou pela força aérea. Tenho recolhido 193 homens. 4° 52’ Sul, 11° 26’ Oeste. Assinado: um submarino alemão.”

Infelizmente, as autoridades militares britânicas, temendo tratar-se de uma armadilha, ignoraram a mensagem. No U-156, os náufragos passavam algumas horas a bordo, justo o tempo para tomar sopa quente e café, antes de retornar aos barcos; apenas os feridos, as mulheres e as crianças permaneceram a bordo do submarino. Os sobreviventes na água foram frequentemente atacados pelos numerosos tubarões que os mordiam nas pernas, e os gritos angustiantes dos feridos ecoavam ao redor do U-156.

Passou outra noite e no dia 14, às 07:40, o tenente Hartenstein recebeu outra mensagem do BdU sublinhando a necessidade de cuidar da segurança e da eficiência do navio. Enquanto isso, alemães e italianos insistiram junto à Comissão do Armistício para que os franceses enviassem, de Dakar, grandes navios de superfície; os alemães até prometeram devolver o combustível utilizado e libertar algumas centenas de prisioneiros. Enfim, os franceses resolveram enviar o cruzador Gloire junto com dois navios de transporte, mas o porto de Dakar era distante mais de 2.000 quilômetros e a situação permaneceu crítica.

Temendo o pior, o BdU ordenou que os U-Boote mais próximos à área do afundamento cooperassem com as operações de resgate dos náufragos, tendo porém o cuidado de não embarcar um número de pessoas tal de impossibilitar as manobras de imersão. No dia 15 de setembro chegaram o U-506 que embarcou 132 italianos, e o U-507 que recebeu 153 sobreviventes ingleses, italianos e poloneses. Também o submarino italiano Cappellini, que já por duas vezes havia transportado náufragos, participou às operações chegando a embarcar um número indeterminado de italianos e ingleses.

Enquanto o Cappellini e os outros dois U-boote se afastaram, o U-156 procedia em superfície em baixa velocidade puxando quatro lanchas carregadas de pessoas, estando muitas outras sentadas no convés do submarino. Se tudo tivesse dado certo, a chegada dos navios franceses ia significar a salvação para as vítimas do afundamento e a segurança para o navio alemão. No entanto, às 11:24 do dia 16 de setembro um avião americano, um B-24, apareceu no horizonte. Hartenstein, consciente do grave perigo, mandou logo colocar na proa do seu U-156 uma grande bandeira branca com uma cruz vermelha e, ao mesmo tempo, lançou uma mensagem à tripulação do B-24 dizendo que estava transportando sobreviventes britânicos, mas ninguém lhe respondeu.

Então, um oficial da Força Aérea inglesa, que se encontrava entre os náufragos, obteve a permissão de se comunicar com a tripulação do avião americano e transmitiu uma segunda mensagem: “Aqui é um oficial da RAF a bordo de um submarino alemão. Há náufragos do Lacônia, soldados, civis, mulheres e crianças”. O piloto do bombardeiro, não sabendo como se comportar, solicitou instruções à base de Wideawake (na ilha da Ascensão), da qual havia acabado de decolar. O coronel Ronin, responsável pela base, entrou em contato com os seus superiores em Washington e, não tendo recebido resposta alguma resolveu, de sua iniciativa, enviar a seguinte mensagem: “SINK SUB”, afundar o submarino!

O B-24 lançou em tudo cinco bombas e o U-156 nada pôde fazer se não mergulhar o mais rapidamente possível. O submarino, mesmo danificado, ainda teve como navegar, mas uns náufragos perdem suas vidas. Das 2.500 pessoas embarcadas no Lacônia pouco mais de 1.000 conseguem se salvar, principalmente a bordo dos U-boote alemães, do Cappellini e dos navios franceses. Cem náufragos, a bordo de duas lanchas, tentaram, sozinhos, de alcançar as costas da África, mas apenas seis deles chegam à terra firme com vida. Essa ocorrência deu origem ao Incidente Lacônia, que teve como consequência a ordem do almirante Dönitz, enviada a todos os navios em novembro de 1942, proibindo a participação de U-boote em operações de resgate a sobreviventes de ataques. Durante os Julgamentos de Nuremberg (1946), o Ministério Público culpou o almirante por ter derramado essa ordem desumana, mas Dönitz se defendeu mostrando uma declaração do almirante Nimitz, comandante em chefe da frota aliada no Oceano Pacífico, na qual se pedia que os comandantes de submarinos americanos não socorressem os náufragos japoneses.

Quanto ao comandante Werner Hartenstein, esse verdadeiro Dom Quixote do mar que havia tentado humanizar um pouco a guerra, perdeu a vida junto com todos os tripulantes do U-156 quando o seu submarino foi afundado perto das ilhas Barbados no dia 8 de Março de 1943. A imprensa alemã informou que "Seus pais aceitaram que seu filho amoroso não voltará para casa, mas está descansando em paz com o seu Senhor”.

Em 2011 a BBC, em cooperação com as TVs alemãs ARD e SWR, produziu uma minissérie em dois capítulos intitulada “The Sinking of Laconia” que teve um discreto sucesso e ajudou a divulgar fatos que jamais deveriam ser esquecidos.

Richard Foxe
Enviado por Richard Foxe em 18/12/2019
Reeditado em 19/12/2019
Código do texto: T6821935
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