O monstro não estava debaixo da cama
Acho que nunca me senti verdadeiramente confortável com a minha existência. É uma afirmação forte para um cara com quase 32 anos de vida, uma perspectiva dolorosa sobre o que é estar sozinho, indefeso e ainda que está sofrendo por não mais se encaixar nos padrões do mercado ou expectativas que a cultura impera sobre nossas individualidades. É uma afirmação forte quando é entendida a ideia de que a sua zona de conforto é a vivência constante do medo das consequências das suas mínimas e mais essenciais ações. É como estar afogado e nunca ter saído da água, nunca ter vivido fora dela. É saber que respirar não vai trazer alívio e não tem ninguém pra te tirar dali mesmo, né? É. Sendo assim, eu aprendi a ter medo do básico muito cedo, muito novo. Não é como se eu me lembrasse dos detalhes sórdidos de todas as vezes que meus medos encontraram seu parceiro algoz. É uma sensação que aos poucos foi se tornando parte da minha forma de ver, de me relacionar, de ser percebido por mim e pelos outros. É o torpor que enrijece os sentidos quando a angústia é fruto de um paradoxo: não importa a direção, vou sofrer.
Aprendi desde cedo a ter medo de falar. Não podia no tom errado, sabe-se lá o que vai acontecer se não entenderem. Do jeito errado, afinal tem jeito certo que não o meu natural e eu nunca soube que jeito era esse. Talvez pudesse soltar uma mensagem que expressasse o meu sentimento, a minha ideia... mas criança não pensa, muito menos sente - não sente nojo, não sente tristeza, não sente raiva -, não naquele mundo. Medo de falar... a linguagem é a capacidade humana de construir pensamentos e consequentemente transmiti-los, é traduzir a própria existência. As consequências do meu falar não seriam aquém do teu entendimento de abuso físico, psicológico e emocional. “Fala direito”, “Por que você está falando desse jeito?”, seguido do tapa cotidiano, algum grito com alguma mensagem que me desorientasse, alguma ofensa. Ainda consigo ouvir os gritos, os xingamentos, as certezas desferidas como lâminas penetrantes de que eu era errado por ser eu.
Aprendi a ter medo de me mover também, a não me mexer fora do tempo ou da ordem dada ou do jeito errado. Levantar, sentar, correr, dançar, respirar... Sempre havia aquela mão, invisível ou não, pronta para desferir um golpe contra a minha integridade sempre que eu me movesse em desacordo com o universo, aquele universo. Invisível, quando formando meus sentimentos de angústia e autojulgamento: se eu fizer, a consequência pode não ser boa e se eu não fizer, pode não também não ser boa, me mexer pra quê? Visível, quando meus sentidos podiam comandar meu corpo para o momento de desespero e sofrimento. Paralisia, tremores, coração com a certeza de que eu não merecia. Ainda consigo sentir a urina nas minhas coxas descendo com apenas a ideia da violência a qual eu nem sabia o porquê de tanta intensidade... Dos gritos... os gritos sempre presentes.
Aprendi a ter medo de agir e de errar, consequentemente. Se para falar e me mover eu tinha medo, imagina errar... imagina o medo se errasse... Lembro como hoje, assim como me lembro de coisas que sinceramente eu não gostaria de lembrar, da cotovelada – isso mesmo, você não leu errado – que levei no peito ao não conseguir responder por que eu tinha tirado 9 numa prova de matemática e não 10. Ou quando eu tentei carregar um saco de laranjas sob uma ordem e o plástico rompeu... a força que eu fazia, o medo de não conseguir... à medida que eu corria para pegar as frutas rolando pelo chão, eu apanhava por algo que não havia sido nem de perto minha culpa. A premissa de que eu, por mais que me esforçasse, não conseguiria nada além de sofrimento e violência me tirou a vontade, o desejo de agir.
Aprendi a ter medo de ser. Sim, de ser. Ser eu mesmo. Eu era uma falha, uma pessoa não desejável dentro de um ambiente o qual, em teoria e em todas as aparências, deveria ser meu lar. Eu era comparado, todo o tempo, com referências próprias, da família, da igreja e acreditem se quiser, meus leitores, da televisão. Fora dali eu era exposto como um troféu, como uma realização pífia de frustrações fora de mim. Eu não entendia por que as pessoas gostavam de mim, já que ser bom aluno, ser educado, ser inteligente e qualquer outra qualidade medíocre não impediam a dor de existir. Aprendi a pedir desculpas simplesmente por estar em algum lugar por que sabia que incomodava. Aprendi a pedir desculpas a cada ação, já me prevenindo das consequências que certamente viriam. Aprendi a pedir desculpas por ser. Robô, dentre todas as ofensas feitas a uma criança, era o nome que mais me machucava...eu realmente paralisava de ou não agia por medo e entedia que a culpa era toda da minha existência.
Pois é, aprendi a ter medo de existir. A minha simples existência era motivo suficiente para a violência. Em todos os momentos eu tive medo de falar e agir, não importava quantos sorrisos, nem descontração, nem com quem eu estava. Um passo fora do que se era determinado e a violência viria, e não existia um padrão. Não tinha como saber o que era esperado, então era melhor não fazer nada. Uma vez, lembro que dormi na cama errada, de propósito. Lembro que eu queria atenção, um pouco de carinho, talvez ser carregado para minha cama e receber um boa noite. Mas o medo de falar ou fazer alguma coisa me paralisava. Eu acordei com tapas na cabeça, gritos, fui jogado na minha cama e até hoje não sei o porquê, nem esse nem outros vários. Ouvi a vida toda sobre os perigos da rua, do crime, dos mais diversos acidentes que poderiam acontecer. Que o mundo não era seguro. Eu não entendia aquele medo todo, já que a existência era ruim e o inferno era ali.
Aprendi a mentir já que a verdade era motivo para qualquer coisa que não bem-estar. Aprendi a manipular as palavras, as pessoas, os momentos com um falso entendimento – precoce – de que eu podia tentar controlar as coisas para que fosse menos pior. Lembro de uma das vezes que eu cai de bicicleta, que fosse lá por qual motivo eu tivesse caído, eu tinha a certeza visceral de que eu iria sofrer, além da queda, mais violência. Não me lembro bem, mas tive medo, pra variar. Eu disse que “um cara me derrubou” – mentira, cai sozinho – pensando que a história ia acabar por ali, afinal, tudo que acontecia era motivo para uma epopeia de terror. Fui arrastado para a rua, com a carne sangrando, esfolado pela brita, onde meu rosto aterrissara na queda, procurar o “cara” que tinha me derrubado. Não era sobre lavar e fazer um curativo, não era sobre eu estar com dor, não era sobre o meu bem-estar. Eu, logicamente, sabia que o homem não existia. Pedalei e dei direções aleatórias, enquanto meu braço doía, o sangue escorria nos meus olhos e eu mais uma vez me sentia um incômodo.
Esses dias eu fui ajudar a aferir a pressão, recebi a ordem de “não passar do 20” e passei. Fui chamado a atenção, fiz minha pergunta de praxe e fui logo agressivamente diminuído “Você e essa sua mania de perguntar Que diferença faz?”. Sim, sempre pergunto isso por quê a ignorância precisa ser combatida. Mas, ainda bem que hoje eu substituí a culpa pelo orgulho de ser, boa parte do peso do medo pela leveza do pouco que sei, as pequenas certezas pelas grandes dúvidas e um algoz – forte, ameaçador – por um sofrível, medroso e acuado ser humano que não, se quer, tem a consciência do que fez ou do porquê da própria existência. Não era sobre mim, nunca foi. Era sobre frustrações, medos e arrependimentos muito além da minha existência. Eu era uma obrigação, nada mais, e fui tratado como uma. O monstro não estava debaixo da minha cama, estava ali. Entre um “olha aí o que você botou no mundo” ecoando pela casa e os gritos no meu ouvido por qualquer que fosse o motivo, fui vivendo e “aprendendo”.
Sinceramente, o medo me persegue até aqui, nesse texto que escrevo. Mas não importa, o medo não importa, não mais. Se a alguém interessar, conto mais desse causo que é minha vida.