CICATRIZ

Sentado na poltrona da sala, um dia desses, sem mais nem menos, eis que fixo meus olhos no meu pé esquerdo, olho bem perto do dedão, e me deparo com uma cicatriz. Imediatamente bate com força em minha lembrança o dia em que um pequeno fato me aconteceu. Uma cicatriz, resultado de um acidente ocorrido, há mais de sessenta anos. Isso mesmo. Eu era uma criança. Tinha eu uns seis anos de idade. Estava na cozinha de minha casa simples, num barraco, por que não dizer, localizado no bairro Dom Bosco, em Belo Horizonte, Minas Gerais, onde passei a minha infância, adolescência e parte da minha vida adulta.

Eram aproximadamente umas cinco e meia da tarde. O céu se tornou muito escuro prenunciando uma imensa tempestade. Naquele tempo, ainda não tínhamos luz elétrica em casa e a comida era feita numa espécie de fogão de lenha, só que alimentado com serragem de madeira, em vez de lenha... Provavelmente são poucas as pessoas que conheceram essa forma de se fazer fogo. Difícil um pouco explicar como funciona. No entanto, como a tecnologia nos permite conhecer tantas coisas, acho que, buscando o site You Tube, o leitor poderá ver com clareza como funciona.(https://www.youtube.com/watch?v=LNqTC-N9qUw)

Mas vamos à cicatriz. Mamãe me entregou uma garrafa vazia e algumas notas de cruzeiros, dinheiro da época, e me pediu que fosse até um comércio, a uns duzentos metros de minha casa, a fim de que eu comprasse querosene. Para quê? Sei que o leitor já deve estar curioso. Para colocar na lamparina e acender o mencionado fogão de serragem. Sim, não havia luz elétrica em nossa casa, naquela época. Fazia pouco tempo que tínhamos mudado para Belo Horizonte, oriundos de uma cidade simples do interior mineiro, Rio Espera, e ainda não dispúnhamos desse benefício. Era, deveras, muito precária a vida que levávamos. Apesar das dificuldades, éramos muito felizes.

Obediente, preocupado em buscar a encomenda o mais rápido possível, já que o céu a cada instante se tornava mais carregado, saio correndo e, como na porta da cozinha havia uma cerca de arame farpado, tropecei e uma ponta dele fisgou o meu pé, saindo muito sangue.

Imediatamente, gritando por mamãe, ela veio em meu socorro. Quase em choro, de novo, mostrou-se forte. Limpou a ferida com o maior carinho, colocou água com sal e me liberou da tarefa, meio arrependida de ter me pedido que saísse naquele momento. Os anos foram passando... passando... E aquele machucado no meu pé, bem pertinho do dedão, se transformou numa cicatriz. Cicatriz essa que nunca desapareceu e que venho carregando ao longo de toda minha vida. Não me trouxe nenhum prejuízo nem desconforto por agora, posso dizer assim. A verdade é que, todas as vezes que, por um motivo ou outro, observo essa marquinha, vem à minha mente a figura doce de mamãe, toda preocupada fazendo um curativo, de joelhos, estancando o sangue que não queria parar de jorrar...

Sei que essa lembrança talvez não tenha um significado para quem estiver lendo essa passagem de minha infância. É que, de vez em quando, meus dedos começam a coçar e me vem uma enorme vontade de dividir com as pessoas um fato corriqueiro, simples e cheio de ternura, através da construção de um texto.

Agradeço a você, leitor, pela paciência de ter acompanhado essa história até aqui. Tão tola talvez, mas carregada de muita saudade de minha infância e principalmente daquela “pessoinha” tão linda e que sempre me ofereceu muita generosidade e muito amor: minha mãe.

Belo Horizonte, 15 de novembro de 2019.

LUIZ GONZAGA PEREIRA DE SOUZA
Enviado por LUIZ GONZAGA PEREIRA DE SOUZA em 15/11/2019
Reeditado em 27/08/2020
Código do texto: T6795885
Classificação de conteúdo: seguro