CAMÕES SEM GLÓRIA
Ela vinha vaporosa do alto dos seus sapatos de doze centímetros, meneando-se com uma chusma de turistas atrás.
Parou junto à entrada dos Jerónimos e virou-se para o grupo com ar de desdém:
- As pessoas acreditam no que querem e a maior parte é de facto muito tacanha e inculta.Por isso não percebo como insistem em render homenagem a este túmulo quando está historicamente provado que as ossadas aqui presentes podem pertencer a qualquer pessoa menos a Luis Vaz de Camões!
-Ora essa!
-Mas o que é que essa perua está para aí a dizer?A chamar-nos burros?
“Ai meu Deus.Outra vez!...Eminência, estou?Desculpe incomodá-lo. A Drª voltou a aprontar e eu temo o que possa vir a acontecer…Neste momento há uma mulher do público que a zurze com uma sombrinha na cabeça e ela pede socorro mas ninguém a acode , enquanto uma voz cavernosa escondida atrás do túmulo do Vasco da Gama só vocifera impropérios …O que é que diz?...Senhor Padre,está gritar pela glande varonil no sua expressão mais grosseira.Sim!Aos berros… o Carvalho sem V!
Sua Excelência suspirou do outro lado:
- Só Camões para quase quinhentos anos depois da sua morte, continuar a provocar tumultos.
Poeta e soldado ele estava e não estava em cada lugar, em cada rua da cidade.Lisboa rendida à identidade que com ele se confundia e o imortilizava.
Uma das maiores figuras da Literatura Portuguesa, o princípe dos Poetas reconhecido por Reis, Especialistas e por quase todos os apaixonados e idólatras da Poesia.
Na verdade, não se sabia nada ao certo da sua vida e do seu percurso.Uma abundância irremediável de contradições e controvérsias.
Estudara na Universidade de Coimbra ou no Colégio do Mosteiro de Santa Cruz?
O certo porém é que demonstrara uma sólida cultura clássica nos seus versos.Conhecimentos de Latim, Literatura e História.
Camões não escreveu para ignorantes.Nisso, sem contestação.
Auto-exilara-se ou fora deportado para combater no Norte de África por causa de amores proibidos com damas de alta estirpe?Teria mesmo tido o atrevimento de se meter com a Infanta D.Maria, irmã do rei e quiçá beliscado-lhe o traseiro?
O certo era que perdera um olho numa refrega algures perto do Estreito de Gibraltar.
“Ah o amor – como ele escrevera – que nasce não sei onde, vem não sei como e doi não sei porquê”.
Quem era e como era o Homem de que hordas de estudantes sabiam sonetos e estrofes inteiras d’”Os Lusíadas” de cór?
Usava barba, era loiro arruivado, hábil no espadachim e com uma disposição temperamental propensa ao conflito e altercação.Onde no entanto preponderava a honra e a vontade de servir homens ilustres e em que quando enérgico, afastava para longe a depressão renitente conseguia até ser alegre e espirituoso.
Consta que levou uma vida boémia e turbulenta que terminou mal.As misérias de Camões!
Mas andou entretanto pela Côrte de El-Rei D.João III, comoveu o jovem D.Sebastião quando lhe recitou “os Lusíadas” soprando, por ventura, sonhos de fama e glória e esperança de grandes Conquistas.
Sofreu severas adversidades, aventuras, fome e naufrágios no alto mar no meio de tormentas e grandes tempestades.Sobreviveu por um fio.
Foi talvez perceptor de nobres enquanto jovens, escudeiro na Côrte.Contraiu dívidas.
Perdeu e reencontrou manuscritos com os seus versos e a sua obra.
Ardeu em conflitos e passou grandes provações.Viveu mesmo um período em indigna pobreza.Adoeceu de peste.Terá sido enterrado numa campa rasa ou no cemitério dos pobres junto ao Hospital onde exalou o último suspiro.
Os historiadores e investigadores não se entendem.Nem a respeito da sua Obra o seu entendimento é unânime.Não deixa de escapar aos detractores e críticos.
Mas a Poesia que se desprende do seu vasto e variado legado literário repartido por vários géneros - épico, lírico e dramático testemunha um talento incomensurável e um nível erudito maior.Nas rimas, sonetos, canções e redondilhas, no histórico, monumental hino á promessa de um futuro melhor que ressalta em “Os Lusíadas”, nos autos do Filodemo,El-rei Seleuco e Anfitriões com que pretendeu o cómico, Camões deixou a sua estrela a cintilar para gerações vindouras com uma acutilância nunca vista.
Mas o seu destino, desmerecimento e má sorte ensombram também a memória nacional que não consegue nunca resgatar com o Dia da Raça,estátuas e monumentos, quadros e desenhos a injustiça cometida para os verdadeiros artistas que nascem portugueses e que tem sido frequentemente votados à indiferença e ao esquecimento.
O grande Poeta queixar-se ia:
“Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos
…
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos”
Também os grandes actores que representariam brilhantemente a sua personagem no Cinema e no Teatro desapareceriam sem fama nem glória como António Vilar e António Marques.
Na alma de alguns portugueses a imagem dos cauteleiros que apregoam a lotaria pelas ruas de Lisboa agita essa má consciência que não reconhece, entre os seus, o genial. Entre esses homens tão maltratados pela Vida haverá um Grande Poeta?