O ESQUELETO NO ARMÁRIO

ANTÓNIO DE OLIVEIRA SALAZAR

As duas mulheres idosas e anónimas caminhavam, uma com a sua bengala encastada em prata, a outra com as canadianas debaixo dos braços trémulos em direcção ao seu túmulo.

E enquanto uma, toldada de lágrimas se ajoelhou e rezou, a outra puxou as cuecas para baixo, alçou a custo a perna atravessada de varizes e urinou longa e demoradamente sobre a laje de mármore imaculada com a lápide de identificação.

Ele era, sem duvida, uma das figuras mais amadas e mais odiadas da História de Portugal.

Terminara Direito com dezanove valores, classificação mais que raramente celebrada na Universidade de Coimbra,ganhara um lugar como assistente e fora convidado para o Governo mas a sua primeira urgência fora apanhar o comboio para Santa Comba no encalço de Maria Júlia.

Encontrou-a à sua espera no jardim ao fim da tarde para uma conversa definitiva e reveladora.

- Vim para pedir a tua mão a quem eu sei que devo tudo.Não me esqueci que sou filho dos caseiros e que foram os patrões, os teus pais que me mandaram para fora e pagaram os meus estudos.

- Sábia decisão em apostar no cavalo certo.No melhor Aluno.Com um futuro promissor e auspicioso.

- Por isso só agora ouso vir pedir-lhes que me deixem casar com a filha que eu amo desde sempre, com quem brinquei e me encantei desde criança.

- António, sabes que os meus pais, os meus irmãos e eu te queremos todos muito bem mas tenho planos para me casar com outra pessoa e os meus pais já aprovaram a ideia.

- Compreendo.Não sou suficientemente digno.Afinal não passo do filho dos…serviçais dos que acartam as malgas com comida para os porcos e que andam de tamancos de madeira ou descalços por aí.

- Estás destinado a voos mais altos.Nem sempre podemos querer o céu e a terra.

Acordaram separar-se como grandes amigos que sempre tinham sido desde a mais tenra infância e a sublimar esse Amor que nele parecia tão forte mas para os outros seria mais um sinal da sua ambição desmedida, desejo de obter um

último troféu, o casamento com a filha dos senhores, os donos da quinta onde ele nasceu e onde os seus pais eram meros criados.

Mas ele era sagaz e astuto como uma velha raposa matreira e mesmo nos seus vinte e poucos sabia esquivar-se com naturalidade e esperteza às situações mais desagradáveis.Como a praxe de ser insultado e vaiado na aula de apresentação depois do catedrático abandonar a sala e deixar o assistente a sós com “as feras”.Sem ninguém esperar, ele adiantara-se:

- Bem agora que o Ilustre e grande Mestre, o Senhor Professor terminou, não posso nem devo acrescentar mais nada e retiro-me com ele, deixando-vos o resto do tempo para reflectirem no seu brilhante discurso.

Mais ou menos, traduzindo, a traço grosso: “Podem ir bater uma, seus vermes cobardes que por mim não me sujeito à vossa praxe reles de ser insultado e aviltado”.

E virou-lhes as costas, decidido, abandonando o anfiteatro que ficou em convulsão, desesperadamente frustrado.

Ele não acreditava na liberdade e no espírito dos portugueses.Achava-os na maioria, uma raça cobarde e traiçoeira como Eça se lhes referira em “A Relíquia”.

Mas a sua obra ressaltou única e foi inclusivamente louvada por muitos outros estadistas europeus: ele assumiu a pasta das finanças, conspirou e arriscou-se com o golpe que virou as páginas da História, impôs a ordem, pôs fim ao saque, desbaratou essa triste primeira república marcada pelo desgoverno e pela violência cheia de homicídios encapotados e suicídios mascarados com uma sucessão infindável de presidentes, de golpes e contra-golpes e de um país à deriva, sem rei nem roque.

Já no poder, controlou as despesas públicas, conseguiu um excedente no saldo da balança de pagamentos, estruturou o Estado,tentou minimizar o conflito de classes através da criação do estado corporativo, incutiu valores e dogmas, trouxe a Religião Católica Apostólica Romana de novo como Ordem a respeitar e conseguiu a estabilidade institucional e política durante algumas décadas.

Evitou o flagelo da participação de Portugal na Segunda Grande Guerra através de uma sábia posição neutral mas obrigou a Nação inteira a pagar um preço incomportável.

A estagnação económica, a pobreza irremediável, a Censura e o seu exército de agentes virulentos e mente-captos, a polícia política, a perseguição, a tortura e a devassa da vida privada das suas vítimas,a insurreição, o terrorismo que desencadeou uma das guerras mais sangrentas e resistentes,durante catorze longos anos, apoiadas na sombra por interesses imperialistas e que provocaram milhares de mortos e estropiados, uma vergonha nacional de que não se ousava falar abertamente ainda na actualidade.

Ele era respeitado e temido como foram D.João II e o Marquês de Pombal pelos seus pares e pelas rainhas reinantes como Isabel II de Inglaterra e pelas depostas como DªAmélia de Orleães e Bragança e os anos passaram velozes.

Maria Júlia casara-se, tivera filhos e enviuvara.Sua Excelência, o Presidente do Conselho voltou à carga e agora na sua omnipotência reformulou o pedido de casamento mas ela repetiu a resposta.Chegou depois dos pides terem passado a pente fino todo o local, não fosse o diabo tecê-las.

- A resposta é a mesma de há trinta anos mas a nossa Amizade será eterna como um velo de oiro. – retorquiu a senhora com cuidado.

- Então não me casarei nunca porque nunca te esquecerei.Talvez seja este o destino que Deus me reservou.Ficar só, orgulhosamente só, ao leme de um velho navio em águas revoltas e perigosas.

Nomeou os filhos e os sobrinhos de Maria Julia para altos cargos quase todos no estrangeiro na diplomacia e deixou-se acomodar na cadeira não desconfiando porém que um dia ela poderia cair como caiu.

O ódio por este homem que foi simultaneamente salvador da pátria e algoz de muitos recrudesceu como um fogo em estopa no breu da noite.Efabulou-se um milhão de acontecimentos que o envolveram e inventaram-se todas as espécies de histórias para o denegrir e acusar.

Ele manteve o país na ignorância e no atraso – Fátima, Futebol e Fado – para manter as multidões quietas e amorfas.Mas todos esses supostos “ópios” continuaram e desenvolveram-se até ao exagero mais descabido, depois da sua Queda e desaparecimento.

E ele vaticinou:

- Morrerei sem pompa nem circunstância e com os bolsos vazios .Nem muitos se poderão gabar do mesmo.

Jaime Nogueira Pinto, professor universitário levantou-se da cadeira de uma das maquilhadoras de serviço e rumou ao estúdio para o concurso talvez mais demagógico e mais cretino de sempre no primeiro dos canais , o eleger por voto popular aquele que seria considerado o Melhor Português em Os Grandes Portugueses.Os ânimos e as paixões encontravam-se ao rubro com uma audiência nunca vista.

A ele, cabia-lhe apresentar a figura de Salazar aos milhões de espectadores que assistiam ao programa contra a de Álvaro Cunhal e AristIdes de Sousa Mendes, os candidatos mais fortes no certame.

A sua vitória foi estrondosa e retumbante mas alimentou uma polémica desenfreada entre críticos e organizadores durante meses.

A raça humana estaria condenada com frequência a deparar-se com a sua própria perplexidade.Fantasmas e esqueletos no armário que se receava muitíssimo soltar porque poderiam criar uma espécie de caos na mente colectiva.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 18/08/2019
Reeditado em 18/08/2019
Código do texto: T6723329
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