O MISTÉRIO EM EÇA DE QUEIROZ

O mistério está presente ao longo de quase toda a sua obra mas começou com a polémica à volta do seu nascimento na Póvoa do Varzim em 1845, filho de “mãe incógnita”.

Carolina Augusta Pereira d’ Eça teria sido a sua verdadeira progenitora antes do seu casamento com José Maria Teixeira de Queiroz, o incontestável pai do grande escritor ou apenas a madrasta que o legitimou contra vontade só na altura do casamento do seu já célebre enteado com uma rica herdeira aristocrata, como o historiador José Hermano Saraiva aventou num dos seus programas de grande audiência no primeiro canal da televisão portuguesa?

De facto a figura da mãe na biografia de Eça é quase inexistente,Então quem teria sido a sua verdadeira?Talvez uma mulher desconhecida da pequeno burguesia sem recursos que fora obrigada a prescindir do filho e a ocultar a sua origem para sempre a troco de algo?

Na fulgurante peça de Jorge Guimarães “O mistério da estrada da vida” dá-se um único encontro entre os dois aquando de uma sessão de autógrafos em que ela,transida e morta por dentro, sem revelar nunca quem é, pede uma dedicatória ao filho num exemplar de uma das suas obras.

No Teatro Experimental de Cascais, o espectáculo atingia o seu climax na cena em que Eça vacila depois da senhora se retirar e repara para com um dos seus amigos:

- Que estranho!Que sensação!Como se ela me fosse familiar durante toda a vida!

Em lágrimas, a actriz Fernanda Neves numa das melhores interpretações da sua carreira com o livro preso nas mãos trémulas e escondidas numas luvas sai de cena, deixando o público estarrecido e emocionado.

Algo não correu bem na sua infância com referência a episódios incestuosos que mais tarde ele transporia para a sua obra em “Os Maias”, o seu considerado chef d’oeuvre e no seu guardado e negado romance trágico “A tragédia da Rua das Flores” só pubicado passados oitenta anos, depois da sua morte.

O pai, um homem culto e com posição ter-lhe-á aberto as portas e conduzido a sua carreira diplomática permitindo que ele pudesse ter a distanciação e objectividade para traçar um retrato realista da sociedade portuguesa do século XIX, percorrendo as diferentes classes sociais numa Lisboa provinciana e pretensiosa e em vilas em desenvolvimento como Leiria.

O leitor treme quando Amaro comete o perjúrio, tira o manto a Nossa Senhora para cobrir e talvez se excitar com a amante, a desprotegida Amélia, quando a pobre entrevada ouve no piso de cima a cama a ranger e quando com o beneplácito do clero a tecedeira de anjos dá um fim ao inocente recém nascido, fruto do pecado.

Os amores ilícitos são um mistério horrendo que o romance desvenda, arrasando com as contemporizações românticas da ficção.

Em “O primo Basílio”o leitor lamenta impotente a fraqueza de Luisa que sucumbe sem grande resistência à sedução de um peralvilho egoísta e desprendido, seu primo.

Quando grandes actrizes como Cecília de Guimarães, Marília Pêra ou Glória Pires guincham como ratas na pele da criada repugnante e viciosa:

- Nem todas as cartas foram parar ao lixo! – Luisa desmaia e o leitor e o público saltam da cadeira reconhecendo a inveja, a chantagem e toda a maldade que Juliana carrega.

Eça escreve – narra e descreve magistralmente mas as suas tramas atingem quem o lê como enredos que ressuscitam “a raça mais cobarde e roída de sífilis da Europa” como ele se refere em “A relíquia”.

E mais uma vez o mistério das saídas frequentes explicadas pelo adultério indecente contra um homem bom e honesto surge como uma constante em Eça que aliás na sua escrita era um torturado da forma, emendando e reescrevendo até quase ao ilegível.

A relação proibida entre Carlos e Maria Eduarda é rodeada por um mistério que só se desvenda demasiado tarde.E a hipocrisia, o cinismo, as bengaladas, as ameaças de duelo, a Lisboa pútrida e desmazelada ressurge viva como ainda a vemos hoje em muitos dos seus aspectos.

Muitas profissionais portuguesas se sentiram quase amaldiçoadas antes, durante e depois de terem interpretado as personagens queirosianas.Como a considerada rainha das actrizes, Amélia Rey Colaço depois da versão muda de “O Primo Basílio” ter jurado nunca mais fazer cinema na vida, horrorizada com o seu desempenho ou a sua dilecta discípula Lourdes Norberto que se estreou a fazer de “Rosicler” na primeira versão de “Os Maias” levada à cena pela companhia (Rey Colaço/Robles Monteiro) e que herdaria a personagem de Maria Eduarda uma década mais tarde e depois de interpretar brilhantemente a Adélia e a Mary na grandiosa produção de “A Relíquia”, ter - o que ela considera o seu momento menos bom - participado na adaptação televisiva de “A tragédia da rua das flores” quando talvez realidade e ficção se entrecruzaram num jogo perverso.Ou a cantora Simone de Oliveira que reagiu á observação do marido encenador e actor quando lhe foi proposto fazer a Genoveva de “A tragédia” no teatro.

“Ele disse:

- Você não tem o ontem como actriz e por isso não deve aceitar esse papel!

E ela confessaria num livro e em entrevistas “Ai o que ele me foi dizer!Então é que eu decidi fazer mesmo a personagem!” E sem experiência de papeis dramáticos imolou-se no fogo, atirou-se como leoa ao bofe e deu-se apaixonada e perdidamente à causa, surpreendendo todos quando beijava na boca o actor assumidamente gay que fazia de filho.

Talvez Eça fosse e fundamentadamente, misógino.

O mistério dos parentescos desconhecidos, a fina ironia queirosiana que numa penada compara o decote de Dona Felicidade a um copo de água a transbordar tudo enleva a magia do óculo com que obervava esses tipos e os trazia para as páginas dos romances com sábia inteligência e refinado bom gosto.

Quando qualquer dos anónimos apreciadores de Literatura pensa em Eça de Queiroz a sua mente parte como um cavalo à desfilada e perscruta os mistérios insondáveis talvez de um dos maiores escritores de sempre com o seu grupo de amigos, os vencidos da vida, Antero e Ramalho a tiracolo e os imortais Afonso da Maia, Raposão, a Titi Patrocínio, o João da Ega, o Conselheiro Acácio e tantos, tantos outros que se julga impossível ter somados tantos de um tal calibre em cinquenta e cinco anos de vida abruptamente interrompidos por um hoje diagnosticável cancer do pâncreas.

Eça grandioso e gigante morreria no dealbar do século XX, em 1900 nos arredores de Paris ,longe da cidade em que havia o Grémio literário em que gostava de se refugiar e das Serras que ele tanto amava.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 15/08/2019
Código do texto: T6720883
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