MARIA JOÃO PIRES
MADE IN HEAVEN
Ela esperava sentada e lívida no seu camarim a hora de começar.A porta abriu-se e a camareira entrou com um lindo e vistoso ramo de gladíolos.
- Mais um, Madame.Com este já perfaz dezassete e o espectáculo ainda não começou.
Ela esboçou um sorriso quase esgar e com um gesto vago indicou que as flores deveriam ser colocadas junto a outras ao fundo e com um ligeiro levantar das sobrancelhas pediu à empregada que a deixasse a sós.Precisava de se concentrar.
Ele já não a ouvia tocar ao vivo havia trinta anos e ansiava por aquele momento. Por isso não informou ninguém que naquela noite ia assistir ao concerto de regresso de uma das maiores pianistas do Mundo.
Em jeito de justificação,participou mentindo à família que ia jantar com colegas da universidade, vestiu-se a rigor com smoking e laço preto e saiu para a noite furtivamente como se se preparasse para uma estranha cerimónia secreta.
Maria João olhou para trás em desagrado e folheou na sua memória mais antiga esse longo, tortuoso caminho que a conduzira até à idade em que nada mais combina muito bem e uma pessoa se começa a preparar para um final nem sempre em grande.A morte do pai ainda antes de ela ter nascido, o piano, a chave da música que lhe fora dada sem ela sequer se aperceber da imensidão do dom e do rótulo de “criança prodígio” com que a etiquetaram aos quatro anos de idade, uma menina assustada e retraída.
António preferiu ir a pé, caminhar até à Fundação onde se realizava o concerto e respirar o ar frio da noite que caía.E aproveitar também para passar em revista os grandes acontecimentos que tinham marcado a sua vida.A infância infeliz, a adolescência conturbada de violência e bullying, marcas e traumas guardados no sótão do seu inconsciente afinal mais robusto do que supunha,a universidade, a descoberta dos outros, sexo com mulheres e depois com… outros, teatro, representação e embuste.
Ela fora estudante, bolseira durante muitos anos, na Alemanha, e não houve nenhum ano em que não tivesse que trabalhar numa casa de gente endinheirada, a lavar pratos, a esfregar o chão, a cozinhar...para conseguir sobreviver.
- Faltam quinze minutos para o início.- era a voz do contra regra no altifalante e segundos depois ouviu bater á porta:
- Posso?- Vladimir, o Maestro convidado assomou à umbreira.
- Venho só cumprimentá-la antes do nosso encontro no palco e tranquilizá-la que já temos toda a orquestra a postos e à nossa espera.Neste momento já procedem à última afinação dos instrumentos.
Ela esforçou o seu melhor sorriso e estendeu a mão que ele queria beijar numa expressão de enlevo e admiração genuina.
- Estais bem?
- Sim.E o Vladimir?
- Não estou nada nervoso.Aliás talvez… só um pouco.
Ambos riram e a tensão desvaneceu-se.
Ele percorreu com passo apressado a Avenida de Berna, uma das artérias mais conhecidas da cidade branca e chegou prontamente á entrada da Gulbenkian subindo a rampa de acesso ao edifício principal.
No Hall a elite, o público sofisticado já se encontrava a falar animadamente, exibindo os seus trajes de cerimónia.Ele entrou sem reparar em ninguém, procurou o balcão para adquirir o programa, ainda a tempo de ouvir o funcionário muito hirto a responder ao telefone, presunçoso.
- Fundação Calouste Gulbenkian…Serviço de Música…
- Madame. Vamos começar!
A cabeleireira e a maquilhadora avançaram para um último retoque. Pente, rouge, spray, lenço, colar.
E ela começou a dirigir-se para os bastidores em passo fúnebre numa cadência estranha como se se tratasse de um ritual estudado.
Levaram-no até ao seu lugar ao centro , na primeira plateia, já cheia à cunha com um misto de perfumes caros a pairar no ar e a janela gigante que dava para o jardim luxuriante ainda à vista, esplenderosa com brilhos e cintilações da noite estrelada.
Ele tirou os óculos do estojo, limpou bem as lentes e assentou-os no rosto já com algumas rugas fixas.
O gongo para a última chamada soou langoroso e o público tossiu e ajeitou-se para ficar direito e se quedar expectante.Ele ainda divisionou ao longe em flashes, os saltos retumbantes da sua carreira empresarial, o casamento ainda jovem, a filha, o neto, o percurso e as transgressões que o acompanharam como um comboio rápido que não pára na maior parte das estações.
O pano preto correu cobrindo a vista para o jardim, as luzes da sala baixaram, os músicos cessaram um ranger surdo e o maestro entrou e recolheu a primeira ovação e virou-se para a direita baixa à espera que ela entrasse.
Ah os maestros com que ela jovem tinha tocado em Londres, Paris e Nova Yorque, a harmonia celestial que atingiam por vezes, fosse Johann Sebastian Bach, Ludwig van Beethoven, Robert Schumann, Franz Schubert, Wolfgang Amadeus Mozart ou Johannes Brahms…a euforia, o voo, a glória… o extâse!Sem falar que com alguns havia dado as mãos candidamente e ido para o quarto do hotel depois da ceia, comungar os corpos, em fúria e estertor até atingir o auge gemendo e gritando até de madrugada.Tinha duas filhas dessas noites inesquecíveis.
Ela entrou com a sua saia preta comprida , a sua camisa branca bordada, o colar de pérolas lindíssimo e todos se levantaram trémulos e emocionados para um forte, longo e caloroso acolhimento a que ela correspondeu com uma vénia lenta e se dirigiu depois ao piano para actuar.
Depois de um silêncio marcante, arrancou com as primeiras notas dos Nocturnos de Chopin.E todos se recolheram à imensidão daquele momento único em que numa acústica perfeita, a música invadiu a sala e as almas e cada nota, cada gota de chuva representada na partitura foi colossalmente tocada com maestria, genialidade e virtuosismo e empolgou e transformou a noite em que só se sentia o bater dos corações alvoroçados.
Ela percorreu com as suas mãos pequenas o teclado do Steinway e viu passar a terra e o lago em Belgais, o amassar do pão no alguidar de alumínio, os vinhos guardados na adega, a raposa domesticada a aproximar-se em busca de alimento e a gargalhada sincera que deu quando um ilustre a chamara de uma espécie de “hippy na reforma”.
No seu lugar ele sentiu as mãos dos seus amantes … Lúcia…Frederica...outros afagarem-lhe o contorno do corpo em sobressalto, os seus relatórios, orçamentos e contas desprenderem-se e libertarem-se, mil folhas a voar no ar ao som divino dos acordes num crescendo de beleza insuperável como se o mundo respingasse a sua carcaça pôdre e retorcida pela acção dos homens e entidades descessem e elevassem os seres terrestres a um outro plano num céu azul e indescritível.
O concerto continuou sem uma falha, sem um desaire, numa performance perfeita e impecável.Quando por fim tudo terminou o público estava em transe e os músicos esgotados e exaustos. As palmas cortaram o ar intensas e fortíssimas e ele no maior anonimato fechou os olhos com emoção, agradecido e grato pela experiência maravilhosa.Quase receva ficar à beira de um enfarte com o choque de prazer e exaltação que agitara o marasmo e mediocridade da sua vida, graças à música …”made in heaven”