JULIE CHRISTIE

MISS JULIE

Tinha sido um longo caminho até à Rússia imaginada. Pasternak e David Lean em conjugação num filme que estoirou mundialmente nas salas de cinema em todo o mundo, depois do deserto de “Lawrence da Arábia”.Mas ela esforçara-se bastante como Actriz.

Gostava sobretudo de desafiar as convenções.

Em Londres, na estreia enquanto a sua estrela coadjuvante, Miss Chaplin, surgiu com um vestido comprido de branco, radiosa, cheia de jóias cintilantes ela decidiu não usar nada, nenhum adereço num vestido despojado e simples. Beleza que baste, olhos azuis e pose e só com isso conseguiu incendiar o desejo masculino como o fogo em estopa.

- Esta mulher tem um diamante num certo sítio! – saída vulgar, grosseira mas a roçar o âmago da verdade de alguns espectadores enlevados.

Na Índia havia o pai,um pintor que geria uma plantação de chá e a mãe desavinda das suas infidelidades que conduziram a um divórcio abrupto.Havia uma meia irmã, filha de uma mulher indiana.Sucedeu-se-lhe uma série de colégios de freiras, de rigor, de rezas impostas, de disciplina férrea e de paixões contidas e domadas.Foi expulsa de um deles por causa de uma anedota picante.

Mas foi em Inglaterra talvez no País de Gales onde viveu com a Mãe alguns anos que sentiu um desejo de se desprender , ser outra ou outras, voar para longe e descer até personagens tão diversas como meninas um tanto ou quanto ingénuas , proxenetas, herdeiras, amantes de homens com dinheiro - depois de ter interpretado em travesti, o Delfim numa produção escolar de “Santa Joana” de George Bernard Shaw.

- Quero ir estudar representação e ser Actriz- uma manifestação serena e aceite sem polémicas de maior.

Estudou.Foi rejeitada pelos palermas do Showbusiness.A mafia costumeira.Mas chegou a oportunidade de substituir alguém relapso e foi com um realizador cujos filmes causavam sensação na época que ela se guindou à Fama nomeadamente num célebre filme com swing e gays à mistura e dois actores conhecidos a degladiarem-se pelos seus favores,Dirk Bogarde e Lawrence Harvey no apogeu das suas carreiras.

E veio o Bafta e o Óscar e ela correu para interpretar a personagem de Lara na grande produção do “Doutor Jivago”.

A sua indescritível beleza, personalidade e determinação elevaram o filme ao sétimo céu e apaixonaram as audiências por toda a parte. Quando ela se debate com a tragédia que lhe assola a casa, dança no baile com o oportunista asqueroso ou entra de peliça e armada na festa onde o anúncio de noivado se vai fazer, o efeito é estrondoso e faz-se silêncio à sua passagem majestosa.

Já não era a debutante insegura, a jovem mulher vulnerável mas a Actriz lindíssima e com um talento aplaudido e reconhecido.

Filmes inesquecíveis sucederam em que encarnou heroínas da literatura ou criou personagens pela primeira vez com uma desenvoltura espantosa.

Muitos namorados e um caso com um grande actor e realizador americano que ficou cativo do seu charme mesmo depois de tudo acabado e a classificou como:

- A mulher mais bela e nervosa por quem me apaixonei.

Deu em activista dos direitos de grupos perseguidos e desfavorecidos, evitou envolver-se com as produções de altos orçamentos e grandes estúdios e tentou a todo o custo manter saudável a sua persona despida e exposta.

Quando fez sob a hábil mão de um realizador de génio a célebre cena de sexo com “o marido” num quarto de hotel em Veneza as multidões de homens em todo o mundo descobriram o potencial erótico com as esposas e companheiras e inspirados por essa cena, tentavam imitar o que tinham visto na tela,derrubando-as no quarto em busca da entrega desmedida que julgavam ter visto Miss Julie dar à personagem de mulher desorientada e manipulada por videntes que lhe prometiam o contacto com a filha afogada num pantâno.

Julie retraía-se sempre com os seus êxitos retumbantes, retirava-se de cena , parecia ficar a vomitar durante meses perante toda aquela enormidade sem sentido.

Isolou-se numa quinta, “longe da turba insensata” aparecia só de vez em quando para um cameo ou presidir a um festival de cinema.Mais aclamações da crítica e nomeações para o Óscar.

Miss Julie tanto surpreendia no Hamlet como na ficção científica ou no drama psicológico.Era genuinamente e relutantemente Diva.

Os anos passaram.Ela envelheceu bem e em grande estilo e retratou as mazelas do Alzheimer e fez pequenas mas luminosas intervenções e papeis principais com glória e sábia altivez.

Já nos seus setentas começou a perder progressivamente a memória.Mas um rasto imenso, rico e admirável já tinha sido traçado durante todo o seu percurso e ela sabia que mesmo que a sua mente se afogasse no lago como no enredo de um dos seus filmes, as imagens, a obra e a admiração sobreviveriam como uma estrela que reconhecemos sempre ao longe na imensidão de um céu escuro.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 20/05/2019
Código do texto: T6652151
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