JOANA EXCELSA PRINCESA

JOANA EXCELSA PRINCESA

Vestida ricamente e adornada com as melhores jóias,avançou com pompa e circunstância ao encontro do Rei seu Pai e do jovem Príncipe e futuro monarca D.João II.

Atravessou por entre fidalgos e súbditos, com altivez, muito serena, uma Princesa da dinastia de Aviz.Tinha dezanove anos e era uma jovem e lindíssima mulher , de cabelos compridos e olhos claros.

- A bênção, meu Pai! – e numa reverente vénia, beijou-lhe a mão e o anel.

- Joana, minha filha.Que saudade!

Os homens regressavam da guerra, das conquistas aos mouros e el-rei D.Afonso V com o seu exército lusitano tomara várias praças no Norte de África, entre elas a de Arzila.

- Teu irmão e os grandes do reino ajudaram-me a combater o Infiel e Deus respondeu às nossas preces, recompensando-nos com uma vitória gloriosa.

Ela ergueu-se e olhou com um débil sorriso a côrte reunida.Aclarou a voz e deixou cair uma declaração mais inesperada e chocante do que qualquer bombarda lançada no fragor da batalha.

- Pois,decerto. Com a graça divina, prometi e irei cumprir que se regressásseis sãos e salvos passaria a consagrar toda a minha vida a Deus Nosso Senhor, tornando-me sua esposa e serva e professando as ordens logo prestes quando ingressar em clausura.

O rei ficou sem fala e o princípe D.João arregalou incrédulo os olhos mas nenhum se atreveu a manifestar o espanto nem o descontentamento, em público.

As pernas da princesa também tremiam por baixo das saias compridas que compunham a sua veste mas, ainda no papel de regente na ausência dos varões reais ,ela juntou as mãos placidamente e preparou-se para com a máxima naturalidade possível, deixar a sala do trono e recolher-se aos seus aposentos.

Nem a sua educação esmerada, nem as várias propostas de casamento com reis e princípes, de França e Inglaterra, para firmar alianças de Estado,nem a sua cultura forjada num ambiente humanista bastaram para demovê-la desse caminho.

Ela que tinha completado o trívio e o quatrívio com frei Justo Baldino, mestre de génio e estudado com sucesso gramática, lógica e retórica, aprendido aritmética , geometria, astronomia e música, e que se tinha também interessado por cartografia com os Descobrimentos , gozara de um estatuto condigno com a sua posição de princesa que fora jurada herdeira , antes do irmão nascer,tendo ficado ambos órfãos de mãe ainda crianças.

O Pai providenciara-lhe uma Casa tão rica como a da rainha falecida, a insigne Dona Isabel de Castela.Contratara os melhores mestres e as melhores aias e também sem hesitações e sem apelos nem agravos tinha mandado degolar o seu único e verdadeiro amor ,Duarte . um jovem de famílias nobres apanhado pelos guardas a sair dos seus aposentos , numa noite fatídica quando ela acabara de festejar o seu décimo oitavo aniversário.

Agora o Rei temia o pior e aceitou destituí-la de imediato das suas obrigações, retirá-la do paço e deixá-la entrar sob o maior sigilo na cripta do convento de Odivelas, às portas de Lisboa.

Nunca ninguém desconfiou do segredo que Joana carregava e quando os representantes do reino vieram dois meses depois reclamar e pediram para lhe falar na tentativa de dissuadi-la de fazer aquela escolha tão prejudicial aos interesses do reino, D.Joana grávida ou doente, nunca se soube ,não apareceu e em vez dela assomou à portada dos jardins, sua tia Dª Filipa de Lencastre, filha do infante D.Pedro morto às mãos do sobrinho Afonso,feito rei e foi ela quem contrafeita, deu a cara desculpando a ausência da sobrinha por motivo de doença.

Após alguns meses de que ficou apenas um retrato da infanta com uma criança ao colo,Dª Joana solicitou permissão ao Rei para se mudar para um outro convento mais distante e fechado ao mundo.

Passou ao largo de Santa Clara em Coimbra que o Pai lhe aconselhara e rumou a Aveiro para se internar no mosteiro da ordem das monjas dominicanas de Jesus.

O Pai tentou ainda demovê-la assim como o Irmão.Foram cuidados em vão.

Ela já tinha decidido afastar-se definitivamente da Côrte,por sinal convicta de que mais parecia um perigoso ninho de víboras que entre si se aniquilavam cruel e insaciavelmente do que um lugar de privilégios e políticas.

E foi em Aveiro, no interior da regra que terá começado talvez a afastar-se inexoravelmente da sua existência terrena.Adoptou o estilo das freiras, mandou esmaltar uma coroa de espinhos em todo o seu ouro e joias, vestiu o humilde hábito das religiosas e canalizou o produto de todas as suas rendas, direitos reais, dízimos, sisas e até a imposição do sal para a manutenção do convento e obras de caridade na ajuda abnegada aos mais pobres e desafortunados.

Já aclamado rei,D.João II insistia em tê-la de volta para cumprir os seus deveres como Princesa.D. Joana escreveu-lhe agastada que “jamais não curasse de tentar em a requerer para casamento com nenhum mortal homem”.Mas o Conselho de Estado, por seu lado, impediu-a de tomar os votos definitivos para defesa e salvaguarda dos interesses do reino.

Ela sobrevivera ao Pai e recebeu o irmão, um dia,numa difícil visita em que ele levou consigo uma inocente criança de três meses:

- Minha muito amada e virtuosa irmã,já que não fazes a mercê de voltares à Côrte e ao lugar que te é devido, entrego nas tuas mãos o meu filho Jorge e rogo-te que te encarregues da sua educação. Este teu sobrinho é o fruto de relações que mantive com Dª Ana de Mendonça, é o meu filho bastardo muito querido mas gerado longe do casamento que tive a infelicidade de contrair com a Rainha, nossa prima Leonor.

Dª Joana acedeu com compreensão e respeito e cumpriu honradamente o pedido do irmão até à sua morte, onze anos depois.

- És a única pessoa em quem confio,Joana.Estou rodeado de traidores e assassinos por todo o lado.E o que eu mais receio é mesmo a falsidade da família perversa e ambiciosa da Rainha, minha esposa - confessou-lhe.

- Podes sempre contar comigo,querido irmão.Só que , de alguma forma é como se eu própria já estivesse morta há muito tempo, tanto que desconheço esse mundo de perfídia e ambição de que me falas e para o qual , aliás, não tenciono voltar nunca.

Reforçou jejuns e auto-flagelações. Teve sonhos proféticos, previu a morte em combate, do seu pretendente Ricardo III de Inglaterra e saiu da vila por duas vezes para fugir à peste de que acabou por adoecer , padecendo corajosamente durante uma longa e dolorosa enfermidade fatal.

Nesse momento tão singular de uma vida considerada desperdiçada e perdida em sacrifício e renúncias ,uma lenda fascinante tomava corpo e forma para se impor segura e firmemente no advir da História do reino de Portugal.

Joana a Princesa foi sepultada no coro da capela .Terão caído flores do céu quando deixou de viver e anos depois quando alguém decidiu mudar-lhe o mausoléu, o seu corpo foi encontrado impoluto e milagrosamente conservado como se jazesse ali só desde a véspera. Rezas e promessas em seu nome terão sido atendidas e a sua fama de santa espalhada como fogo num incêndio na noite escura.

Reis e Papas interessaram-se pela sua figura e papel tão controverso, mandaram celebrar o seu culto, foi canonizada e nomeada protectora da cidade em Aveiro e erigidas capelas e igrejas com o seu nome.

Santa Joana a princesa cedo deixou o mundo – com trinta e oito anos apenas, mais cedo ainda o seu palácio, a sua côrte , a grandeza e o fausto dos anos da Expansão em que Portugal se viu grande e poderoso numa época estranha e em mudança, cheia de falsos deslumbramentos.

Ela afastou-se com determinação e vontade férrea da vil condição humana para se transfigurar num anjo ou numa estrela que atravessou o céu num segundo mas que deixou para sempre um rasto infinito de perfume e de tristeza.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 08/05/2019
Código do texto: T6642177
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