SEBASTIÃO DA GAMA

A POEIRA DO TEMPO

Se ele estivesse algures numa nuvem decerto que sorriria incrédulo ao presenciar o espectáculo montado depois da sua morte.

Tinha sido alegremente desdenhado, tratado com paternalismo e objecto de toda a espécie de críticas mas quase unanimemente considerado como senhor de boas intenções, de uma ingenuidade simples e com poucas ambições.Um simples professor de liceu, coitado.

Que insanidade! Escolas e bibliotecas, discursos e cerimónias,Câmaras empenhadas, prémios, condecorações e corta-fitas presidenciais que o evocavam como uma figura de vulto, personalidade exemplar e glória nacional, depois de morto.

Ainda em vida, num momento, escapulia-se até à praia com um papel e um lápis e voltava com o rascunho de um poema.Por vezes com a felicidade estampada no rosto, por vezes com lágrimas a aflorar de comoção, um homem jovem alvo de uma ameaça fatal.

Havia o verde,a Serra, a praia, o Portinho da Arrábida.Os pássaros marinhos e a beleza selvagem a começar a ser ameaçada pelas selvas de asfalto e a ganância do turismo.

E havia ela, a doença que desde a infância lhe ensombrava os dias, o futuro e o fazia com frequência, pronunciar-se:

- Não me posso dar ao luxo.Não sei se estou vivo amanhã.Não tenho tempo.

Que o elevava ás alturas, a uma euforia de viver e quase em uníssono a uma amarga dôr de se lhe impôr um fim prematuro e cruel.

Chegara a procurar Deus com desespero para poder aceitar melhor o seu triste fatum.

“Agora,

que eu já não sei andar nas trevas,

não me roubes a Tua Mão, Senhor,

por piedade!

Voltar às trevas não sei,

e sem a Tua Mão não poderei

dar um só passo em tanta Claridade”.

Eram outros tempos, Sebastião sentia-se comprometido com a sua missão como professor.Um professor que talvez não sobrevivesse hoje com os meandros dos jogos de poder, com a imoralidade generalizada e com os ambientes competitivos do “vale tudo” no convívio com a promiscuidade viscosa dos whatsApps com que os alunos desaprendiam, desrespeitavam e se convidavam uns aos outros para toda a espécie de experiências.

Ele defendia que nunca se deve desistir de um caso mesmo que ele se revele uma nódoa , que se devia chamar as ovelhas tresmalhadas ao rebanho, que a aula era de todos e que devia ser um encontro de alegria e festa.Que a correcção dos testes não deveria ser feita a vermelho porque lembrava o sangue a escorrer das feridas.Muito consciente das misérias e sempre preocupado com os problemas sociais no Estado Novo.

“Povo anémico e triste,

meu Pedro Sem

sem forças, sem haveres!

— olha a censura muda das mulheres!

Vai-te de novo ao Mar!

Reganha tuas barcas, tuas forças

e o direito de amar e fecundar

as que só por Amor te não desprezam!”

A família amava-o ao ponto de deixar tudo para trás e vir com ele viver para os ares saudáveis da serra com o intuito de o salvar.

Na mira de se celebrizarem os biógrafos e críticos que postumamente fabricaram grandes amizades com o Poeta, pouco se referiram ao facto dos pais transformarem o velho forte em ruínas numa pousada e restaurante para montar um negócio de família e constituírem assim uma importante base e o refúgio que permitiu ao filho mais novo aliviar a sua condenação.

Quando se sentia melhor, ele apreciava nadar, receber os amigos com os braços ao alto e comover-se com a beleza da paisagem.Exortar que ela deveria ser preservada e cuidadosamente mantida.Escrever longas missivas, breves notas e reflexões sérias sobre o que se desenhava á sua volta.

A sua vida foi breve.A dupla tuberculose renal venceu e a morte sobreveio aos vinte e sete anos depois de um internamento de urgência no Hospital e de dois dias implacáveis em grande sofrimento.

Joana, a sua jovem e infeliz viúva ficou destroçada e vencida mas consagrou a sua vida inteira a dar visibilidade à obra meio desconhecida do marido, revelando postumamente um valioso espólio em que para além da produção poética figurava o célebre Diário de um jovem professor de Português, um livro de culto para a Pedagogia Moderna.

“O nosso Amor, que história sem beleza,

se não fôra ascensão e queda e teimosia,

conquista... (E novamente queda e novamente

luta, ascensão... ) Ó meu amor, tão fria,

se nascêramos puros, nossa história!

Chora sobre o meu ombro. Confessamos.

E mais certos de nós, mais um do outro,

mais impuros, mais puros, nós ficamos”.

Essa patine que só o tempo depositava nos quadros conferiria densidade, estatura e um mais justo valor à sua obra e, a ele, Sebastião da Gama, talvez o eternizasse.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 07/05/2019
Código do texto: T6641505
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