DOLORES HART
UM CONTRATO COM DEUS
Linda vacilou nos seus sapatos altos de doze centímetros com o vestido vermelho justo ao corpo salientando os seus belos seios a transbordar do decote.Sentiu uma tontura, uma espécie de náusea e segurou no microfone, titubeando:
- Ai meu Deus,não sei se estou a ver uma estrela ou um pinguim em cuecas…
A reacção foi instantânea na régie:
- O que é que ela disse?Ouviram o que a preta disse?
A câmara realmente vislumbrou num plano geral uma freira idosa com olhos muito azuis, a caminhar sorrindo ingenuamente pela red carpet da cerimónia de entrega dos Óscares que estava a ser transmitida em direto, worldwide para milhões de espectadores em todo o mundo.
- Macacos me mordam se não é a Dolores Hart aos oitenta anos que vem angariar fundos para uma causa qualquer do convento onde se encafuou há mais de meio século! - exclamou um executivo da network.
-É mesmo.É ela.Ouvi ou li que o Paul Newman andou a ajudá-la.Tirem a Linda do ar antes que ela se estatele no chão tão parva que ficou.Eu posso ver um polícia a parir no meio do palco que já não me espanto com nada. - afirmou o responsável pela transmissão.
A veneranda religiosa passou ao largo sorrindo e baixando a cabeça para os ilustres com ar de papalvos que a fitavam estarrecidos.Como que a pairar, suspensa, acima do chão como a Mary Poppins.Talvez se estivesse a rir por dentro.
Há cerca de cinquenta e cinco anos atrás ela era uma estrela em ascensão na complexa e perigosa constelação de Hollywood.Com créditos conquistados graças a um sólido talento e uma excelente aspecto físico: uma beleza rara entre o celestial e o sensual,uma loura de olhos brilhantes, azuis e irresistíveis, um misto de candura e travessura muito atraente.
Tinha evoluído desde os papeis rotulados como o interesse romântico do protagonista aos de actriz num papel principal sob a direcção de alguns conceituados e experientes realizadores.Contracenado e beijado muitos dos mais cobiçados homens do mundo do espectáculo: Elvis Presley, Montgomery Clift, Stephen Boyd,George Peppard, Maximilian Schell, John Saxon numa longa fila de bem apessoados sex symbols do grande écran.E estava noiva, a sério, de um arquitecto.
E o seu êxito sucedia-se não só no silver screen como no teatro e na televisão.Até que o lendário Michael Curtiz a inseriu no elenco da produção de “Francisco de Assis” um filme biográfico sobre a grande figura de um santo venerado em todo o mundo católico.
A sua interpretação de Clara, a jovem nobre que se apaixona pelo homem santo e que acaba por também tomar os votos como freira numa sublimação ímpar e renúncia ao amor terreno marcou pela sua autenticidade impressionante, pela energia do seu enlevo e entrega.
Como que decidiu ficar naquele papel para sempre, renunciar a tudo, esvaziar os bolsos , revogar todos os compromissos com os seus crescentes projectos artísticos e celebrar um contrato com Deus sem rejeitar um passado que a tinha conduzido até àquele estádio e momento decisivo.
Comentavam as más línguas que ela tinha um ménage-à-trois com Deus e os seus co-protagonistas.
Há quem afirme que foi o encontro tido com o Papa em pessoa, Sua Santidade João XXIII que determinou essa viragem de cento e oitenta graus.Quando em resposta à sua autoapresentação “Eu sou a actriz que representa o papel de Clara no filme “Francisco de Assis” ele terá respondido em italiano “Não, tu és a Clara, ela mesma”.
Mais tarde já noviça ela ficou sem fala quando a Abadessa lhe retorquiu:
- Pensas que deixaste tudo para trás mas enganas-te porque muitas dessas coisas a que julgas que renunciaste, vais necessitar delas aqui.Agora é que vais precisar de interpretar um papel a sério.
Mas ela conseguiu ultrapassar todos esse quid pro quo com serenidade e hábil diplomacia, desenvolver projectos de apoio a doenças degenerativas e incuráveis através da Arte e progredir nas responsabilidades e nos cargos até chegar a Reverenda Madre da Ordem das Monjas Beneditinas.
As outras trinta e oito freiras que com ela partilharam a clausura, as orações e as rotinas religiosas talvez nunca conseguissem entender inteiramente a história surrealista da sua companheira.
Como conseguiu ela manter até à morte dele a amizade do ex noivo,o contato com antigos colegas do showbusiness como era o caso de Patricia Neal que lhe escreviam e a visitavam com regularidade?Como conseguira ela renunciar a toda aquela Fama e Sucesso do mundo proibido?
Ela lutou sempre, abnegadamente pelo que achou que estava certo e que era justo, independentemente do que os outros, hipócritas ou não, consideravam próprio normal, admissível ou eventualmente correto.
Como Pirandello diria: “Para cada um sua verdade”…