RAINHA EM TEMPO DE TREVAS

Tinha ainda em criança vindo para o reino para ser formada como futura rainha pelo casamento com o sucessor da coroa, o princípe , futuro rei D.Afonso IV.

Na Idade Média, a barbárie não se tinha ainda desvanecido na realidade e os reinos ibéricos guerreavam-se continuamente firmando alianças, perpetuando traições num frenesim de violência sem fim.

- Filha querida deves aprender desde logo.Cedo. – segredava-lhe a ama.

E assim,Beatriz menina, olhos de testemunha assustada,por vezes com terror genuino assistiu ao desenrolar da história, impelida para um destino que nunca desejou mas a que não podia escapar.Destino de princesa fora dos contos de fada.

O futuro sogro D.Dinis era generoso, poeta, compunha cantigas de amigo e trovas de amor cortês.E A sogra, a rainha Dª Isabel de Aragão que viria a ser a mais famosa da dinastia de Borgonha dizia-se a sua segunda Mãe com a sua seita secreta e herética , os seus milagres, a sua personalidade marcante. De que aliás se criaria a lenda, com pão a transformar-se em rosas, a populaça rendida aos pés e o temor e a reverência dos maiores, nobres e alto clero que pediriam para a canonizar e converter em imagem de culto cristão.

Já jovem Beatriz veria o futuro marido rebelar-se contra o pai com ciúmes dos meios irmãos.Um ciúme que lhe corroíria a alma e o tornaria matador e cego de tanto ódio e sede de vingança.

Silenciosa ela via os exércitos defrontarem-se e esmagarem-se não fosse Dª Isabel interpor-se e tentar evitar o pior.

Assim ela atravessou os esponsais com o Princípe e consumou o casamento ainda adolescente.

- Majestade, estou pronta para deixar de ser donzela.Rojo-me a vossos pés.

Pesarosa ascendeu à Coroa com a morte do velho rei D. Dinis e com o exílio auto-imposto da rainha a que já chamavam santa e se retirou para o convento de Santa Clara em Coimbra.

Ela aprendera a calar-se.A receber terras e tenças que lhe deviam como consorte, de olhos baixos mas mesmo sem querer viu-se no centro de paixões e inimizades fatais que assolavam a sua família em Castela que cobiçava os territórios vizinhos.A terra como principal fonte de riqueza.O feudalismo.A visão teocêntrica de uma sociedade ainda tão pouco conhecida e para quem a excomunhão era o pior castigo que podia recair sobre a alma dos vivos.

Horrorizada não pôde conter a perseguição movida aos cunhados pelo rei seu marido, o assassínio de um deles às mãos do próprio Afonso,ironicamente imortalizado como o Bravo pelas conquistas aos mouros na batalha do Salado.

Mas esse homem que Deus lhe dera, jurara nunca procurar consolo fora do tálamo conjugal e por isso nunca se lhe conheceu barregã ou manteúda, foi-lhe sempre fiel mas dos seis filhos que fizeram, medraram apenas dois que continuaram a saga.

- Pedro e Maria foram os únicos, os únicos que conseguiram escapar às teias da feiticeira que me dizimou os filhos.

Ela submetia-se obedientemente e cumpria o seu papel e quando os amores do filho se opuseram aos interesses do Estado e ele se enamorou de uma jovem esbelta e loira da comitiva da princesa Constança com quem casara, o inferno entre pais e filhos repetiu-se como uma maldição.

Porque Afonso sanguinário e cruel mandou executar sem apelo Inês de Castro na ausência de Pedro que se virou contra o pai e o julgou algoz de mulheres inocentes e lhe declarou guerra.

Na Idade Média havia castelos, caminhos de cavalos, almocreves, salteadores, epidemias e a vida e a morte de mãos dadas.

Uma rainha medieval tinha apenas o seu destino por cumprir.Ela seguiu o bom exemplo e intercedeu em favor da paz – do filho contra o pai, do sobrinho contra o marido.Também por uma questão de lutar contra a tragédia.

Beatriz rainha com o seu chapéu em cone, o seu toucado elegante e atado ao queixo, véus e túnicas côr de púrpura e burel castanho não foi metida nem achada nos conflitos .Não foi sequer ouvida ou a sua opinião respeitada. Nesse tempo tenebroso em que os homens se degolavam sem lei nem causa a vida pouco valia.

Fez o que tinha que ser feito, tentou em vão apaziguar as feras, tentou acalmar-se na sombra dos seus aposentos a bordar rodeada de damas ou a rezar em lágrimas na capela junto á torre.Merlões e ameias ao vento agreste como perfis no horizonte sem resposta.

- De mim ninguém vai querer saber.Não serei mencionada nem lembrada quando morrer.

Engano o seu.D. Pedro poria o nome da mãe à sua única filha com Inês de Castro e o neto, D.Fernando, já rei ,chamaria em sua honra a sua única filha de Beatriz desejando ambos que as infantas herdassem as qualidades da antepassada mas as areias do tempo remeteriam o seu nome para uma fila secundária e distante da galeria de notáveis.

-Fui sisuda e raramente deixei que os meus verdadeiros sentimentos se manifestassem nos meus atos ou acções.Não deixei nunca transparecer o que sentia.Baixei sempre os olhos e retirei-me a tempo.Ainda bem que consegui.O rei meu marido foi um assassino e o meu filho também.Tive que me defender contra as suas iras com as armas ao dispôr.Sabedoria…Astúcia…Sensatez…E algum atrevimento.

Dois anos depois de Afonso ser enterrado e Pedro dar início a uma nova jornada de perseguição e vingança aos conselheiros matadores de Inês, a rainha Dª Beatriz deixou-se lentamente enfraquecer.

Na Idade Média grassava a peste, a falta de higiene e cuidados básicos.A Rainha preparava-se para partir para sempre.

Adoeceu, foi piorando, mandou dizer que não recebia visitas e esperou calmamente pela Morte.

- Dever cumprido?Que mal querença , que vazio e que tristeza!Para quê, Deus? Tanto sofrimento,tanta luta, tantas vezes por uma glória vã?

Deram-lhe a extrema unção e ela morreu pouco depois.

Num sinal de respeito extremo o novo rei, seu filho, D.Pedro sentou-se à mesa, põs as mãos à cabeça e chorou, chorou desconsolado nessa noite até aos primeiros raios de sol brilharem na madrugada.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 29/04/2019
Código do texto: T6634818
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.