IDE VÊ-LAS
Nas brumas da memória se perdia o rasto daquela que fora por mito ou por razão divina a única Santa na galeria das rainhas…
Aragão…as rosas…as trovas…a mula a atravessar as hostes de pai e filho que se defrontavam numa sandice…a horda de famintos que a perseguia nas ruas e caminhos medievais…os caminhos da peregrinação – imagens que iam e vinham na visão panorâmica que antecede a morte no leito do moribundo.
Ela era a almejada princesa de Aragão por quem concorriam vários pretendentes.Mas o pai, o rei Pedro de Aragão,sereno e calculista, escolhera por precaução e segurança, aquele que já era rei, Dinis e por isso ela se tornaria rainha de Portugal da primeira dinastia, a de Borgonha, em plena e selvagem Idade Média.
Casou-se por procuração aos onze anos.Por carta de arras recebeu como dote dezenas de vilas do reino.Cumpriu o seu dever à justa procriando dois filhos, um deles varão e de resto era quem invectivava o marido a deixá-la em sossego e ir às meretrizes dos arrebaldes.
- Senhora, que desvario!Imaginais os cronistas a imortalizarem esse vosso dito, a exortar vosso marido, o rei a procurar as mulheres da vida?- refilava a aia.
De uma beleza suave e serena, Isabel seráfica nem sempre respondia quando era interpelada ou respondia com o silêncio.Reacção sábia e prudente.
Mas de facto vaticinava-se um constrangimento na agenda de qualquer guia turístico que conduziria grupos à zona histórica de Odivelas.
- Odivelas, localidade ancestral tornada numa cidade dormitório onde habitam milhares de pessoas.Etimologicamente deriva da expressão “Ide vê-las” qua a Rainha Santa terá dito ao rei D.Dinis, seu marido.
- Ide vê-las quem? – perguntaria um turista interessado.
Seguia-se uma hesitação e gaguejos:
- Bem.Ide às p …enfim, torna-se difícil traduzir do arcaico!
Como se de súbito e contra vontade pusessem um pé ou ambos numa poça de água enlameada.
D.Diniz mandava plantar pinhais,o de Leiria nomeadamente e com ela fundava a primeira Universidade e frequentemente entregava-se à Poesia.Ao amor cortez , às cantigas de amor e às cantigas de amigo.Beber , comer e folgar…”e nos, meninhas bailaremos y”.
- Vinde.Vinde agora.Ninguém nos vê sair.
A rainha chamava a aia para a acompanhar e ia num giro apreciar os ares, calcorrear caminhos, embrenhar-se nas ruas junto ao mercado.Aí os pobres mais adranjosos vinham pedir-lhe esmola num alvoroço logo que a reconheciam e ela distribuía todas as moedas que tinha no alforge e tinha que se libertar com dificuldade daquelas mãos famintas que a prendiam e ameaçavam até magoá-la na ganância de a despojarem de todas as ofertas que trazia.
Isabel era destemida, sem medo e numa ocasião teve que atravessar já sob as hostilidades em curso, um campo de batalha em que se defrontavam o marido e o filho, enciumado pelo favoritismo que o progenitor devotava ao seu bastardo, Afonso Sanches.
O rei fora o primeiro a retirar-se envergonhado e triste tomando consciência da situação extrema e cuidou desde aí de proteger a rainha nas suas incursões por vezes perigosas de ajuda e auxílio aos mais desfavorecidos.
- Ireis com guardas.Imponho limites.
E um dia D.Diniz seguiu-a e surpreendeu-a com o regaço cheio de pães para dar aos pedintes.
- Que levais aí Senhora?Sabeis que vos impus limites e que me deveis obediência como vosso consorte e Rei?
- São rosas, senhor!
Pão transformado em rosas, magia ou milagre.O episódio correu os séculos à desfilada…e fez da rainha, santa, mais tarde reconhecida pela Santa Sé e incluída no Catálogo dos Notáveis.
Isabel granjeava essa fama desde cedo mas havia membros do clero que a advinhavam herética, cátara ou albigense, uma espada que criticava e conspirava contra a Igreja imersa em corrupção, vendida em simonias e dividida por cismas e escandâlos.Pura e simplesmente Isabel não era deste mundo.Sentia-se mormente enfadada com tanta violência e pecado.
Quando D.Diniz morreu em 1325, a rainha desfez-se de muitos dos seus bens pessoais, dando-os aos pobres e rumou numa cansativa peregrinação a Santiago de Compostela.
Fez saber aos súbditos que não tinham mais soberana e recolheu-se ao Convento de Santa Clara a Velha em Coimbra que tinha mandado erigir.
Só voltou a sair anos depois para interceder uma vez mais pela paz – na ocasião entre os reinos Portugal e Castela desavindos.
Mas em Estremoz sucumbiu à peste.
Sepultaram-na em Santa Clara.O convento foi inundado pelas águas do rio.O seu ataúde submerso durante quatrocentos anos.Quando foi resgatado, o corpo ressurgiu incólume, foi transladado para um túmulo de cristal e prata em Santa Clara a Nova, um mosteiro mandado construir no outro lado do Mondego, que os viajantes de todas as partes visitam e se extasiam.
Isabel de Aragão, Rainha Santa conquistara o imaginário fantasista, entrara na História pela porta grande e o seu nome seria para todo o sempre sinónimo de grandeza, generosidade e nobreza de alma.