LUIZ GAMA - GENIAL E ORIGINAL
Agora que estamos reescrevendo uma "história oficial" do Brasil um pouco mais verdadeira, é obrigatório que nos detenhamos na figura de Luiz Gama. Ex-escravo, ex-soldado, ex-copista, poeta (autor do livro emblemático “Primeiras Trovas Burlescas”), jornalista e advogado, também juntou a este quinhão de informações o fato de ter sido artífice da liberdade de mais de 500 escravos. Para ajudar ainda na composição do mito, é bom descrevê-lo como autodidata em todas as funções que cumpriu.
Filho de uma negra livre e de um nobre da baixa categoria descendente de portugueses, nascido na Bahia em 1830, Luiz Gama perdeu a mãe muito cedo. Ela, Luiz Mahin, envolveu-se na “Revolta dos Malês”(rebelião de escravos ocorrida na Bahia em 1835). Dois anos depois, uma nova revolta, a “Sabinada”, e a mulher teve que fugir para o Rio de Janeiro. Deixou o filho com pai. Em sua pequena autobiografia, durante uma entrevista já no fim da vida, Luiz Gama comenta que nunca mais viu a mãe.
O pai o vendeu como escravo aos 10 anos a um negociante de Lorena, cidade no interior de São Paulo, perto do Rio de Janeiro. O mercador tencionava vendê-lo, mas não conseguindo o seu intento, confinou-o como escravo na pensão que possuía na capital de São Paulo. Lá, o garoto aprendeu rudimentos de sapateiro, lavador de roupas, costureiro e copeiro. Foi nessa casa que foi iniciado na alfabetização aos 17 anos, pela boa vontade um hóspede. Depois de muito e não conseguir a sonhada alforria junto a seu “dono”, ele foge da casa aos 18 anos. Alistou-se na Guarda Municipal em seguida. Lá permaneceu trabalhando por 6 anos. Casou-se me 1850 e teve um filho. Este, tornou-se Comandante do Corpo de Bombeiros de São Paulo, muitos anos depois. Depois do serviço militar, Luiz Gama tornou-se amanuense (copista de documentos oficiais), por intermédio do Conselheiro Furtado de Mendonça, de quem era amigo íntimo. Nessa época, também aproximou-se bastante do Profº de Direito José Bonifácio, o Moço , da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Este, que era sobrinho do patriarca da Independência, também era poeta, e junto com o Cons. Furtado, influenciaram bastante a figura intelectual que se delineava em Luiz Gama, que tornou-se uma profundo conhecedor de Letras Brasileiras e Letras Jurídicas. Aproveitou-se da proximidade desses amigos para devorar muitos livros de suas bibliotecas particulares, que freqüentava assiduamente.
Em 1859 publicou o “ Pequenas Trovas Burlescas ”, que o alçou a um estrelato inimaginado, alcançando muito sucesso tanto entre intelectuais quanto entre o público leitor. Destaca-se nesse poema o poema “Bodarrada”, que originalmente o título “Quem Sou Eu?”.
(...)
“Não tolero o magistrado
Que do brio descuidado
Vende a lei, trai a justiça
- Faz a todos injustiça -
Com rigor deprime o pobre
Presta abrigo ao rico, ao nobre (...)
(...)
Se sou negro, ou sou bode
Pouco importa. O que isto pode?
Bode há em toda casta
Pois que a espécie é muito vasta...
Há cinzentos, há rajados,
Baios, pampas, malhados,
Bodes negros, bodes brancos
E, sejamos muito francos,
Uns plebeus e outros nobres. (...)
Combinando com maestria o humor escatológico, os pendores liricamente românticos e pequenas propensões morais claras, seus versos hilários logo são consumidos – e discutidos - à exaustão. Depois da perda do emprego público, pois os Conservadores (que tinham chegado ao poder), o consideravam um Liberal, portanto, inimigo político. Foi trabalhar em um jornal, firma nesse período profundas amizades, tais como Castro Alves, Joaquim Nabuco e Rui Barbosa. Como jornalista, torna-se ainda mais combativo. Defende idéias tão díspares quanto complementares, como ensino público gratuito para crianças pobres (lembrem-se: estávamos na segunda metade do século 19, “ainda”), libertação inequívoca de todos os escravos, criação de bibliotecas comunitárias e defesa incondicional da proclamação da república no país. Segundo alguns registros, Luiz Gama criou o primeiro jornal de traços cômicos na cidade de São Paulo, o “Diabo Coxo”, em 1864.
A biografia desse “Orfeu de Carapinha”, como ele mesmo se declarava, foi de tal forma devotada à causa antiescravagista, que libertou mais de 500 escravos, ora atuando como rábula (uma espécie de advogado informal), ora arrecadando fundos para compra de alforrias. Morto em 1882, em decorrência do agravamento do diabetes que o corroía há anos, teve o maior acompanhamento funerário que se tem notícia até então, na província de São Paulo. Segundo o romancista Raul Pompéia, presente ao féretro, o falecimento de Luiz Gama provocou uma comoção sem precedentes em São Paulo. Ao seu enterro acorreram intelectuais, jornalistas, advogados, professores, escritores, e pobres, muitos pobres. Negros, muitos negros. Ex-escravos. E, pasmem!, até senhores de escravos.
LEGADO
A força que Luiz Gama expressou em vida ficou um tanto esvaziada por um século, cultuado apenas por iniciados. Ganhou contornos mais nítidos, contudo, agora que estamos refazendo a história (as histórias?) do Brasil. É imperativo que se faça uma leitura crítica para que não se crie mitos rarefeitos. Feitas todas as contas, todavia, fica clara a importância histórica de Luiz Gama. Seus escritos, se não foram precursores de uma escola literária qualquer, são, no entanto, um primor de conhecimento técnico. E também inéditos em idéias progressistas, argutas e plausíveis. Dele, inclusive, é lembrada uma frase usada no discurso de defesa de um escravo que matara o amo, que resume de modo muito feliz o enfrentamento do escravo contra o “dono”: “Em verdade vos digo aqui, afrontando a lei, que todo o escravo que assassina o seu senhor, pratica um ato de legítima defesa”. Suas palavras sempre lúcidas são loquazes, irônicas quando preciso, diretas enquanto assertivas. Postulam à eternidade pela riqueza textual e defesa irrestrita de seus ideais.
O que melhor repercutiu de Gama para a posteridade foi sua luta incansável pelos direitos do negro e do pobre. O homem resoluto, de passo firme e discursos certeiros, não aceitava tergiversações ou evasivas, quando procurava as instâncias institucionais para libertar um irmão. Fazia uso de forte embasamento jurídico e uma notável oratória. Não se envergonhava de arrecadar fundos para comprar a liberdade de alguém. Utilizava as páginas dos jornais para discutir, informar, reclamar, conclamar e requerer, numa luta renhida contra a idéia escravista. Qualquer tablado se tornava palco, ou púlpito, ou tribuna, desde que fosse para despertar a atenção das pessoas para a urgência de sua idéias.
Bibliografia
LUIZ GAMA – O LIBERTADOR DE ESCRAVOS (Mouzar Benedito, Ed. Expressão Popular, 1ª edição, 2006)
LUIZ GAMA – VIDA E OBRA (José Arrabal, www.famigerado.com )
LUIZ GAMA – POETA NEGRO REVOLUCIONÁRIO (Causa Operária Online)
LUIZ GAMA (Estações Ferroviárias do Estado de São Paulo)
(postado originalmente no sítio www.firmaproducoes.com.br)