A obscena Senhora
Hilda Hist nasceu na cidade de Jaú, São Paulo, aos 21 de Abril de 1930. (...- Que azar! Essas foram as palavras do poeta Apolonio Prado Hilst ao constatar que sua mulher Bedecilda Cardoso dera luz a uma menina. Tempos depois, o casal se separa. Mãe e filha mudam-se para São Paulo e Apolonio, então com 35 anos, é internado em um sanatório na região de Campinas, vítima de esquizofrenia. Aquelas palavras do pai motivariam a jovem Hilda a dissuadi-lo. "Meu pai foi a razão de eu ter me tornado escritora. Eu tentei fazer uma obra muito boa para que ele pudesse ter orgulho de mim", declarou certa vez a poeta. Pena Apolonio não ter lido os primeiros versos da filha. A loucura o havia consumido).
Em 1948, entrou para a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Largo São Francisco), formando-se em 1952. Em 1966, mudou-se para a Casa do Sol, uma chácara próxima a Campinas (SP), onde residiu até o seu último dia de vida. Ali dedicava todo seu tempo à criação literária.
Hilda Hilst estreou na poesia em 1950, com a reunião de poemas intitulada Presságio. Seus versos despertaram a admiração de Cecília Meireles. Eram tempos do curso de Direito no Largo São Francisco. Ao lado da amiga Lygia Fagundes Telles, a bela Hilda frequentava as principais festas da alta sociedade paulistana e despertava paixões. Vinícius de Moraes e o ator norte-americano Dean Martin foram seus amantes. O último, Hilda conhecera em viagem à Europa, em 1957.
Nos anos seguintes, novos livros foram publicados, até que em 1963, após ler Carta a el Greco, do escritor grego Nikos Kazantzaquis, Hilda Hilst decidiu abandonar o cotidiano da alta sociedade para dedicar-se exclusivamente à literatura. "Eu tinha que ser só, para compreender tudo, para desaprender e compreender outra vez. Minha vida era muito fácil, uma vida só de alegrias, de amantes", afirmou. Um dos princípios suscitados pela obra era o isolamento do mundo como forma de alcançar o verdadeiro conhecimento humano. Em um ato que mais tarde chamaria de "conversão", a poeta mudou-se para a Fazenda São José, em Campinas, propriedade de sua mãe. Três anos mais tarde, seria construída no local a Casa do Sol. Na companhia de amigos e dezenas de cães, Hilda viveria na casa até sua morte. Além de poesia, a autora passa a escrever prosa ficcional e teatro, ambos com alto teor poético. "Toda a minha ficção é poesia", afirmou. Hilda apontava Samuel Beckett e James Joyce como suas principais influências nesses gêneros.
Poeta, dramaturga e ficcionista, Hilda Hilst escreveu há quase cinqüenta anos, tendo sido agraciada com os mais importantes prêmios literários do país. teve a obra traduzida em países como França, Alemanha e Itália. Sua relação com a crítica foi instável ao longo dos anos. Bem quista inicialmente, sua obra recebeu duras críticas, especialmente na fase dedicada ao erotismo, em meados dos anos 1980. Pouco lida e em difícil condição financeira, a autora decidiu fazer versos que agradassem o grande público e consequentemente, vendessem mais. Não foi o que aconteceu. As vendas foram escassas e as críticas, severas. Porém, o conjunto de sua obra foi reconhecido ainda em vida. Os diversos prêmios conquistados, entre eles o Jabuti e o APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte), atestam a importância de sua produção literária.
Participou, desde 1982, do Programa do Artista Residente, da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. Seu arquivo pessoal foi comprado pelo Centro de Documentação Alexandre Eulálio, Instituto de Estudos de linguagem, IEL, UNICAMP, em 1995, estando aberto a pesquisadores do mundo inteiro.
Em 1997, o adeus à literatura. Segundo Hilda, tudo já estava dito em seus mais de 30 livros. Era chegado o momento de aceitar o silêncio. Estava conclusa a obra daquela que desejava levar adiante a poesia que o pai, impossibilitado pela loucura, não conseguira. Após 7 anos de hiato literário, o adeus à Casa do Sol. A poeta, que tematizou Deus, a morte e a transcendência, partiu na madrugada do dia 4 de fevereiro de 2004. " Não sei se vou encontrar o papai. Eu queria tanto ficar com ele... ele era lindo."
Em março de 1997, seus textos Com os meus olhos de cão e A obscena senhora D foram publicados pela Ed. Gallimard, tradução de Maryvonne Lapouge, que também traduziu Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa.
Entre a Física e a Metafísica, Hilda Hilst
- Deus, a paixão e a morte. Estes são os três temas sobre os quais a escritora paulista construiu uma das mais intrigantes obras da literatura mundial
_por Cláudio Fragata, para "Globo Ciência", ano 6 - agosto 1996 - nº 61
Desde Presságios, seu primeiro livro, publicado em 1950, até Estar Sendo, Ter Sido, seu último trabalho, que será lançado em breve pela Editora Albatroz, Hilda descreveu uma longa trajetória, ora feita de prosa, ora de poesia, sempre repleta de indagações metafísicas.
Tão fundo ela foi nesse incessante questionamento, que acabou cruzando a fronteira da literatura para enveredar pelas ciências exatas. Quem visitá-la em sua chácara, a poucos quilômetros da cidade paulista de Campinas, vai encontrá-la rodeada por pilhas de livros, mas poucos deles tratam de literatura. Em sua maioria, são leituras teóricas, relacionadas à física, à filosofia e à matemática, com as quais ela procura refletir sobre questões como a imortalidade da alma, "do ponto de vista científico, não apenas metafísico", como ela diz. Por isso, Hilda vive mergulhada na obra do
físico Stephane Lupasco, que defende a idéia de que a alma é feita de matéria quântica.
Foi a preocupação com a imortalidade da alma, aliás, que a levou, na década de 70, a realizar uma série de experiências com o intuito de gravar vozes de mortos. O estímulo surgiu a partir de pesquisas semelhantes feitas pelo cientista sueco Friederich Yuergenson, cujos resultados foram estudados pelo Instituto Max Planck, da Alemanha. Sob o olhar incrédulo, mas interessado, de físicos respeitados, como César Lattes, Mário Schenberg e Newton Bernardes, Hilda passou a esparramar gravadores de rolo pela sua chácara, deixando-os ligados. Trocou-os depois por gravadores cassetes acoplados a rádios sintonizados entre duas estações. Foi assim que captou e gravou vozes enigmáticas pronunciando palavras e fragmentos de frases, algumas, segundo ela, com até 12 vocábulos. Não foi levada a sério e suas experiências acabaram postas de lado. "Fosse hoje, com os cientistas buscando novos paradigmas, eu não passaria por louca", ironiza.
Na literatura, Hilda viveu a situação contrária: foi sempre levada a sério. Até demais. Carregou durante toda a sua carreira literária a fama de escritora difícil e de poucos leitores. Resolveu acabar com a pecha seis anos atrás, ao publicar uma trilogia pornográfica, iniciada com O Caderno Rosa de Lory Lambi, que deixou os críticos de cabelos em pé. Conseguiu o que queria: chamar a atenção sobre o seu trabalho. Hoje, de volta à literatura "séria", ela se divide entre o novo livro e a idéia de transformar sua chácara num centro de estudos psíquicos, filosóficos e científicos, que promova a integração entre diversas áreas do conhecimento.
Hilda afirma que escritores como Joyce e Kafka anteciparam, na literatura, a dimensão einsteiniana do espaço e do tempo: "É por isso que não acredito mais no texto linear, em romances com começo, meio e fim",
adverte. "Nunca é assim na própria vida." Mas ela vê outras conexões entre a literatura e as ciências exatas. Acha que, no fundo, não há muita diferença entre o escritor e o matemático, a não ser o uso de seus respectivos signos, ou seja, as palavras e os números: "Eu sempre me fascinei com o matemático
indiano Srinivasa Ramanujan", conta. "Ele dizia que para resolver seus intricados teoremas era movido apenas pela beleza das equações. Na poesia também é assim. É uma espécie de exercício do não-dizer, mas que nos dilata de beleza quando acabamos de ler um poema." Hilda estende estas relações até mesmo para a nomenclatura da física: "Eu vivia dizendo para o Schenberg que expressões como 'número quântico de estranheza', 'algures absoluto' ou 'luz interdita' tinham tudo a ver com a poesia e a metafísica."
Embora preocupada com a morte e a finitude das coisas, Hilda não perde, na vida e na arte, a sua conhecida irreverência. Talvez seja esta a sua principal marca, que um episódio acontecido anos atrás ilustra bem.
Durante uma aula na Unicamp, ao lado de Mário Schenberg, Hilda falava para uma platéia de físicos e estudantes. No meio da exposição, notou que um físico presente caçoava de suas idéias, ao mesmo tempo em que insistia em coçar as virilhas. Lá pelas tantas, ele torpedeou: "Quer dizer que a senhora acredita realmente na imortalidade da alma?" E Hilda, rápida: "Eu acredito na imortalidade da minha alma, porque se o senhor continuar apenas rindo e coçando o saco, sequer constituirá uma alma."
Foi publicado pela nankin editorial.
Texto Anexo
Nem sempre o trânsito de Hilda pelas ciências foi muito fácil. Ela lembra que, em menina, era péssima em matemática. "As freiras do colégio onde eu era interna propunham problemas impossíveis para mim, tais como: eu tenho 3 galinhas, uma ficou doente e morreu, outra desapareceu; com quantas galinhas eu fico? Isso me deixava desesperada, porque eu queria saber a razão destes fenômenos. Por que deixaram a galinha morrer? Por que descuidaram da outra para que sumisse? Eram exemplos muito sacrificiais que me davam. Eu achava as freiras horríveis."
Trecho do livro Estar sendo. Ter Sido.
"devo dizer que tenho visto deus. é um tipo minhon, quase maneiroso. (...) insisto com Matias que é assim mesmo. ele diz impossível, deus só pode ser grandalhão e vermelho. bobagem. um conceito conservador. e com aquele vozeirão. ao contrário: voz de moça e pulsos e canelas finas. como é que você pôde ver as canelas? tô te dizendo, Matias, vi. (...) e se você falasse com o padre Esteira? (...) ele, sim, vê deus. e como é o deus dele? é luz, Vittorio, é luz. tento explicar a Matias que a luz é entropia. andei lendo sobre isso no Lupasco. he, cara complicado. Lupasco, é? antagonismo. é a palavra-chave em Lupasco."
A dramaturga
As oito peças que compõem a obra teatral de Hilda Hilst, três delas inéditas em livro, foram recentemente compiladas e publicadas pela Editora Globo. Com organização de Alcir Pécora, o volume conta ainda com posfácio da poeta e dramaturga Renata Pallottini.
Todas as peças foram escritas entre 1967 e 1969, período em que o teatro assumia uma forte conotação política, dado o contexto da ditadura militar. O tema central do teatro hilstiano é a dominação, geralmente exercida por uma instituição que se impõe por meio da força. Porém, diferentemente do que predominava na dramaturgia da época, as peças de Hilda Hilst não exaltam o populismo, nem a coletividade. Seus heróis são seres de exceção, responsáveis por criar as melhores hipóteses políticas, ante o conformismo e apatia da maioria.
Prêmios
Foram sete prêmios literários, no total. Em 1962, o Prêmio PEN Clube de São Paulo, por Sete Cantos do Poeta para o Anjo (Massao Ohno Editor, 1962). Em 1969, a peça O Verdugo arrebata o prêmio Anchieta, um dos mais importantes do país na época. A Associação Paulista dos Críticos de Arte (Prêmio APCA) considera Ficções (Edições Quíron, 1977) o melhor livro do ano. Em 1981, Hilda Hilst recebe o Grande Prêmio da Crítica para o Conjunto da Obra, pela mesma APCA. Em 1984, a Câmara Brasileira do Livro concede o Prêmio Jabuti a Cantares de Perda e Predileção (Massao Ohno - M. Lydia Pires e Albuquerque editores, 1983), e, no ano seguinte, a mesma obra recebe o Prêmio Cassiano Ricardo (Clube de Poesia de São Paulo). E, finalmente, Rútilo Nada, publicado em 1993, pela editora.
_Arquivo Cedae - Unicamp