A história real do meu pai, Gerd Silbiger
O destino assim traçou sua morte já no ventre da mãe. Mas não poderia ser um fim como tantos que acontecem a toda hora pelo nosso mundo. Teria que ser de uma forma que não lhe desse chance de defesa. E para que ficasse bem claro que não seria por acidente ou algo nesse sentido, o tal destino decidiu que junto dele morreria sua família. Então achou que isso seria pouco. Quis o tal destino que, junto dessa família, também morressem outras famílias. Muitas outras. Milhares delas. Continuou achando que seria pouco. Então sacramentou que deveriam morrer, junto daquele homem, milhões de famílias. E assim se fez. Cumpriu-se à risca cada palavra dessa sentença proferida por um destino frio, cruel e meticuloso nas suas sentenças. Um destino que, sabe lá Deus movido por qual desejo ou empurrão, ceifa vidas a granel sem pedir licença e nem, tampouco, perdão. Destino que dá um fim em toneladas de vidas que tinham todo chão para percorrer à sua frente. E que nomearia, para o papel do grande algoz, seres tão humanos quanto aqueles que foram dizimados ao atacado. Que cria condições para que essa matança transcorresse com eficiência cartesiana, diante do mais absoluto silêncio de algumas nações que não foram capazes de mover uma palha para impedir que a morte abrisse suas asas com maestria soberba. E foi exatamente que assim se fez.
Gerd Silbiger nasceu em 12 de março de 1924 numa pequena cidade, quase uma aldeia, da Polônia, Bielsko-Biala, que ficava próxima à fronteira com a Alemanha. Filho de Bronka e Oskar Silbiger. Tinha um único irmão, Herbert. Uma família judaica típica do seu tempo, cultivando valores, sem extremismos, da sua tradição religiosa como tantas outras. Faziam o Shabat, quando a primeira estrela aparecia nas noites de sexta-feira, que era composto por um jantar especial e algumas orações, ou brachot (leia-se brarrot) como se diz em hebraico. Aos 13 anos, Gerd fez sua barmitzvá, quando o jovem atinge sua maioridade judaica, na sinagoga local. Os Silbigers levavam a vida com relativa tranquilidade. Oskar tinha um pequeno comércio de frutas e verduras que provia o suficiente para não faltar nada em casa, mas sem dar condição para que tivessem grandes luxos. Falavam alemão entre si e utilizavam o polonês apenas para conversar com os criados. Por sinal, se davam muito bem com os alemães, seja pela proximidade física, seja pela similaridade de costumes. Eram povos irmãos, mantendo um convívio sem grandes turbulências, ao longo dos séculos.
Gerd e Herbert brincavam na rua, frequentavam a escola e viviam como dois garotos polacos judeus típicos, que naquele pedaço do país representavam uma expressiva maioria. O rádio era o mais poderoso veículo de comunicação daquele período. Jornais não tinham frequência muito regular e nem traziam muitas notícias sobre o que acontecia por aquelas paragens e por outras mais. Oskar mantinha o seu rádio ligado durante todo o dia de trabalho e, quando voltava para casa, a primeira coisa que fazia era botá-lo para funcionar. A relação com sua esposa era bem tranquila e carinhosa, sentimento que foi passado aos filhos no cotidiano. Bronka cuidava da casa e dedicava ao preparo da comida o maior empenho. A batata e carne eram a base principal do que se comia, com poucas variações no cardápio, tanto no almoço quanto no jantar. Não seguiam a regra casher, que é determinada pelo judaísmo mais ortodoxo, que fazia restrições para ingerir carne de porco, alguns crustáceos, como camarão, misturar carne em geral com leite etc.
Quando começaram a pipocar no rádio notícias e comentários de que a Alemanha estava em guerra com vários países, invadindo alguns deles de forma avassaladora, desrespeitando regras diplomáticas internacionais, Oskar não deu muita importância. Afinal, sempre mantiveram relação amistosa e cordial com os germânicos, seria impossível que algum deles viesse a fazer algum tipo de mal ao país vizinho. As notícias foram se avolumando, ficando cada vez mais ameaçadoras, mas o patriarca da família não arredou pé da sua postura de ignorar aquela ameaça que, a cada dia, chegava mais perto do universo deles. Oskar foi tocando a vida com a guerra mostrando seus dentes afiados, fazendo soar suas trombetas com tanta força que poderia ensurdecer os ouvidos de Deus. O mesmo Deus que, tudo indica, viu aquele cenário ser construído com incrível precisão e não foi capaz de mover uma palha para reverter a situação. Alguns dizem, até, que o Criador tinha a faca e o queijo na mão para fazer aquela guerra, e as tantas mais que a nossa história tem tatuado ao longo dos tempos, virar pó em milésimos de segundos. Mas, saberia só Ele o porquê disso, fez e faz ouvidos moucos para essas manifestações da bestialidade humana, permitindo que homens se matem até não ficar mais nenhum em pé. Exatamente como naquele enredo de carnificina a granel que estava se propagando feito praga, e que somente o Oskar Silbiger achava que não era nada.
Mas era tudo. A Alemanha, tendo um certo Adolf e seus asseclas à frente, tinha arquitetado um meticuloso plano para tirar judeus, ciganos, homossexuais e outras minorias do mapa. Não poderia restar nenhum deles vivo e quanto mais eficiente e mais rápida fosse essa matança, melhor para todos. Campos de Concentração, câmaras de gás e fornos crematórios surgiram para que a tal "solução final" pudesse vigorar com plena maestria. Gerd lembrava bem o dia em que sua família foi arrancada de casa por aqueles brutamontes fardados e levados, tal gado no matadouro, para serem jogados em cercados de arame farpado nos quais viveriam os últimos tempos de suas vidas. Na cidade polonesa de Auschwitz, o exército de Hitler cercou uma grande área para lá entulharem com seus milhares de prisioneiros, lhes propiciando uma condição miserável, encharcada de humilhações e degradações sem trégua, de forma que decapitassem quaisquer reações contrárias. Os alemães têm por DNA a postura de cumprir ordens numa obediência absoluta, como fiéis servidores de causas que vão abraçando com tal vigor que acabaram se tornando suas mais efetivas causas. Essa serviçal postura foi determinante para que os propósitos estabelecidos pudessem ser cumpridos na mais precisa exatidão.
Quando a família Silbiger foi levada para o Campo de Concentração. Gerd e Herbert foram separados dos seus pais e nunca mais os viram ou tiveram quaisquer notícias deles. O ano era 1943 e aquele rapaz no final de sua adolescência, 19 anos, certo dia deu por falta do irmão, do qual também nunca mais teve notícia. Tinha um primo, Erich, que era o único membro da família que parecia ter restado. Gerd trabalhava na cozinha e deixavam que ele comesse as cascas de batata que descascava, gesto raro de humanidade num cenário que pingava sangue de tanto horror e desumanidade. Um inferno, por mais dantesco que se mostre, tem um dia em que acaba. Esse apetite de fazer seu todo chão que encontrasse pela frente, que parecia ter sido outorgado ao exército alemão, tinha dias contados. Quando os aliados entraram em cena, acabando com aquele jogo demoníaco, o legado da destruição de seis milhões de almas judaicas estava perdurado, entre elas a de Bronka, Oskar e Herbert Silbiger. Gerd assim enganou a morte daquela vez.
Ele tinha um tio, Roman Luftig, que havia vindo para um certo país da América do Sul, Brasil com sua esposa, Irene, e a irmã, Fanny. Conseguiu por intermédio de uma organização judaica internacional a localização do endereço deles, em São Paulo. Bastou uma rápida troca de cartas e o parente distante mandou uma passagem de navio para aquele jovem vir se juntar a eles. Roman era um bem sucedido empresário e foi pioneiro no país na produção de pulseiras de couro para relógio. Quando Gerd colocou seu pés no navio, olhou para trás e não viu mais nada. Nem sentiu mais nada. Todo o horror vivido seria deixado naquela terra que transbordava sangue por todos seus poros, sangue de gente que perdeu todo direito à vida pelos simples fato de serem o que eram. E nada mais. Foram condenadas sem direito à defesa por um pérfido tribunal invisível, que fez vigorar a lei do mais forte, a lei do mais sanguinário, a lei do mais impune.
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