"Perdoe-me, minha pequenina"

Era madrugada do dia 15 de outubro de 1.999, lembro-me que fora acordada pelo tocar da campainha, que ressoou sombriamente. Levantei-me rapidamente, já temendo e prevendo o que era inevitável: o falecimento do meu avô Agenor Fogacci.

Meu tio parado na porta, minha mãe com as mãos segurando parte do peito, enquanto eu me deixava cair sobre o sofá da sala, nem me importava com a nudez.

Algumas lembranças ainda tenho daquele palmeirense fanático, bastava chegar frente à sua casa e tocar a buzina que ele prontamente se dispunha a dar qualquer voltinha, pelo simples prazer de sair de casa.

Quando eu ia até a casa dos meus avós (que fica a um quarteirão da minha) dedicava-me a irritar o meu “Buda”, apelido que carinhosamente coloquei. “Buda” ria das minhas palhaçadas, e irritava-se com o enorme barulho que eu proporcionava no silêncio daquela casa.

Meu dom culinário, que àquela época era variado, despertava em meu avô um carinho muito mais do que especial. Vira e mexe o saudoso palmeirense pedia: “Faz aquela berinjela com molho?” E foi assim, dois dias antes do meu avô morrer. 

Havia chegado do hospital, onde ficara internado por conta da pressão alta, não conseguia levar a colher à boca, era um martírio vê-lo daquele jeito. Lembro-me que pediu para fazer a tal berinjela, mas só comeria se fosse frita. Tentei engana-lo, dizendo que estava do jeito que ele gostava, mas foi inútil a tentativa. Negou abrir a boca para que eu continuasse a alimentá-lo.

Era uma figura carismática por demais. Em seu enterro conseguiu reunir os veteranos do “Vila Nova” e até mesmo os rivais “Madureira”, foi difícil acompanhar o cortejo pela cidade, sem que as lágrimas marcassem cada esquina dobrada.

Não houve egoísmo da minha parte e nem dos outros familiares, não esperávamos a morte rápida, achávamos que minha avó Tidinha iria antes, por conta da doença. 

A imagem de minha avó, sentada no antigo sofá da sala, chorando baixinho pela morte do meu avô, ainda vive em minha memória. Os dois viviam sozinhos, mesmo rodeados pelos filhos e netos, mantinham-se integralmente unidos, um ajudava o outro, nas queixas, nas brigas (minha avó é sistemática, exigia horário para almoçar e jantar, enquanto meu avô era um “bater de pernas” inveterado) e até mesmo nos receituários médicos.

A triste partida do meu avô pré-anunciou o esfacelamento “parcial” da família, que antes era extremamente unida.

Resolvi morar com a minha avó, e no dia após o enterro do meu avô eu estava já me acostumando à rotina da dona Tidinha: seis horas da manhã me acordando para tomar um cafezinho fresquinho. Naquela época ela não caía à toa, caminhava pelo quintal da casa e até ensaiava umas varridinhas no quintal. Mas eu a poupava; ladrilhava todos os dias o chão, que era de taco. Eu adorava sentir o cheiro de limpeza, deixava a casa todinha arrumada até a hora do almoço, depois enquanto eu lia algum livro ela tentava tirar um cochilo no sofá, e foi assim durante nove meses, até que resolvi bater as minhas asas. Foi aí que começou o desterro da minha pequenina.

Eu jamais havia comentado o meu sentimento em relação ao meu “suposto abandono”, talvez movida pela culpa e pela sensação de que estarei perdendo-a. O fato é que após eu ter saído da sua casa, ela foi definhando dia após dia. Sua casa, dantes freqüentada diariamente, começou a ficar vazia; meu primo, que também morava conosco, resolveu voltar para Campinas, e assim ela foi ficando sozinha.
Minha mãe ia todos os dias ajuda-la, e fazia isso quantas vezes fora preciso, às vezes, tentava persuadi-la de que melhor seria se ficasse em casa, mas ela jamais deixaria sua casa.

Certo dia, minha irmã mais nova resolveu subir na casa da minha avó para “espia-la”. Voltou chorando copiosamente. 

Não devo relatar a cena que minha irmã presenciou, pois não ficaria à vontade para narrar. No mesmo instante, ligou para meus tios e fizeram uma “reunião” (eu odeio este termo, dava a impressão que minha pequena sempre fora um negócio ou uma situação emergencial, que assim deveria ser tratada), na qual ficara decidido que pagariam uma pessoa para cuidar dela. 

E assim foi, entre reclamações e elogios, entre choros e risos, entre brigas e aperto de mão, entre o natal triste e o carnaval festivo, até os dias de hoje.

Hoje, minha pequenina encontra-se internada no hospital após agravamento da pneumonia. No mesmo hospital que meu avô fora internado, e no mesmo dia em que também fora internado, só que no mês de outubro.

Não quero ser mais egoísta, não a quero sofrendo. Eu só quero pedir perdão por tê-la abandonado, mesmo que meu abandono tenha sido para seguir o meu destino.

Como eu já havia dito em um texto anterior: “Queria eu, ser Deus, para poupá-la do martírio e da dor.”

Que Deus à abençoe, minha querida avó.