A vida tormentosa de Edgar Allan Poe

A VIDA TORMENTOSA DE EDGAR ALLAN POE
Miguel Carqueija


“No que concerne aos acontecimentos e aos fatos do calendário da vida do poeta, não há mais desculpa em falar no “mistério de Poe”. O enigma, se algum há, que continua preso ao nome de Edgar Allan Poe, deve ser encontrado mais no caráter do homem, do que no fatos de sua jornada mortal.”
(Hervey Allen, “Edgar Allan Poe: notícia biobibliográfica”)

O maravilhoso volume “Poesia e Prosa’ da Editora Globo (de Porto Alegre), edição de 1960, é um alentado esforço de mais de 500 páginas, provavelmente o melhor livro que já se editou no Brasil, deste autor lendário. Faz parte do volume uma biografia escrita por Hervey Allen e pela qual podemos seguir, com minúcias de detalhes, a vida agitada e atormentada deste grande gênio das letras norte-americanas. Farei aqui uma resenha desta obra, que revela um grande biógrafo.
Allen deixa bem claro e acompanha de perto o prolongado sofrimento que foi a existência de Allan Poe, cuja figura austera e sombria até hoje é familiar ao público. Sabemos que a pobreza já acompanha Poe desde o nascimento. Filho do meio, entre um irmão e uma irmã, Poe nasceu em Boston, em 1809, sendo seus pais Davi Poe e Isabel Arnold Hopkins, inglesa de nascimento. Eram artistas de teatro. Viviam na pobreza:
“No inverno de 1811 (Isabel) foi prostrada por uma doença fatal, vindo a falecer em 8 de dezembro, em situação de grande miséria e pobreza, na casa de uma modista de chapéus escocesa, em Richmond.” Perdendo a mãe com apenas dois anos de idade, já a vida de Poe começa a ser marcada pela tragédia.
Mas já ocorrera outra tragédia, anterior a essa:


“No verão de 1809 os Poe foram para Nova York, onde Davi Poe ou morreu, ou abandonou sua mulher, provavelmente esta última coisa. A Sra. Poe foi abandonada com o menino Edgar e, algum tempo depois, deu à luz uma filha.”

Poe ficou então na casa de um negociante escocês, John Allan, de onde afinal lhe veio o nome do meio. Sabe-se que era um homem próspero; ele e a esposa Frances não tinham filhos, outro membro da casa era Nancy, irmã solteira de Frances. Assim, Poe pôde gozar uma infância aparentemente feliz, sem os problemas que se acumulariam nos anos seguintes.
A família chegou a passar uns cinco anos na Inglaterra e Escócia, voltando em 1820 aos Estados Unidos. Allen vai narrando minuciosamente, com caprichos de Júlio Verne — com a diferença de que Verne contava histórias de ficção, e esta é verdadeira. As amarguras de Poe vão logo surgir com as dificuldades materiais de seu pai de criação, e suas aventuras extra-maritais. A mãe adotiva de Poe teve a saúde abalada; o adolescente tomou o seu partido nas dissenções domésticas. Começa um longo entrevero com seu padrasto. Ao se matricular na Universidade de Virgínia em fevereiro de 1826 (tinha só 17 anos) Poe, segundo seu biógrafo, praticamente iniciava sua vida de adulto. Mas as dificuldades financeiras também haviam começado, trazendo um cortejo de flagelos:
“Seu pai de criação parece mesmo, naquele tempo, ter-se mostrado tão alheio a seu pupilo que lhe dava mesada muito menor que a necessária para sua manutenção. O jovem estudante fez brilhantes progressos nos estudos, mas também se entregou a rapaziadas um tanto extravagantes. A fim de manter sua posição, começou a jogar descomedidamente; perdeu, e utilizou-se de seu crédito junto aos lojistas locais de modo ousado. Foi por esse tempo também que ficamos sabendo, pela primeira vez, ter ele começado a beber. Os efeitos de bem pequena porção de álcool no organismo de Poe foram devastadores.”
Rompido afinal com o padrasto, impedido de retornar à universidade por causa das dívidas, Poe segue com a cara e a coragem para Boston, onde de algum modo conseguiu publicar um pequeno volume de poemas, hoje uma raridade (citado até por Augusth Derleth num dos contos da série do detetive Solar Pons). Em seguida resolveu entrar para o exército, onde permaneceria poucos anos. Sua madrasta, a quem ele muito estimava, faleceu sem que Poe a revesse, por causa da intransigência do Sr. Allan que só tardiamente permitiu o seu retorno. Por fim residiu em Baltimore, em casa de sua tia Maria Clemm, que faria o possível para protegê-lo a partir de então. Retornou provi soriamente à casa do padrasto em Richmond, voltou ao exército, foi por fim definitivamente repudiado. Todas essas desgraças com uma pessoa tão jovem certamente o marcaram pelo resto da vida. Uma coisa é certa: a grande pobreza, beirando mesmo a miséria, acompanhou grandes nomes das letras universais, como Dostoievski e muitos outros.
Na continuação da vida de Poe, assim se refere o biógrafo:


“Em fevereiro de 1831 seguiu para Nova York. Estava sem dinheiro, mal vestido, e quase morreu dum resfriado complicado com uma doença do ouvido, depois de ter chegado à cidade.”

Poe já era um autor publicado, chegando ao terceiro volume, mas continuava paupérrimo. Acabou voltando à casa da tia e da prima Virginia, então uma criança, mas com quem Poe se casaria no futuro. “Poe passou os quatro anos seguintes em Baltimore, em condições de extrema pobreza”. Em seu estilo conciso, escorreito, enxuto, Allen não deixa dúvidas sobre a situação lamentável que perpassou toda a vida do contista e poeta.
Apesar de tudo Poe acabou se tornando jornalista, no jornal “Southern literary messenger”, de Richmond, além de se casar discretamente com a prima então com 13 anos (!)
Sabe-se que Allan Poe obteve verdadeiro êxito como jornalista, contribuindo poderosamente para o sucesso daquele jornal. Poemas, contos, resenhas de livros, Poe era eclético e brilhante. Mas a fatalidade não lhe daria muitas tréguas...
Infelizmente Poe acabou deixando o jornal, partindo com a família para Nova York em 1937. A bebida continuava a perturbas sua vida, e seu plano de fundar uma revista literária não se concretizou. O autor de obras tão geniais como “O corvo”, “William Wilson”, “A queda da Casa de Usher” e “Manuscrito encontrado numa garrafa” tinha dificuldade em conduzir sua vida prática, prosaica.
Em 1838 saiu seu romance de ficção científica “A narrativa de Artur Gordon Pyn”, narrado como de hábito em Poe, pelo protagonista. Tratava de uma expedição ao então desconhecido continente antártico (H.P. Lovecraft escreveu uma continuação, “Nas montanhas da loucura”. “A esfinge de gelo”, de Júlio Verne, consta também ser continuação do livro de Poe, mas não cheguei a ler).
É surpreendente que, em meio a tanta pobreza e tantos dissabores, Poe conseguisse produzir textos tão brilhantes e criativos. Parece que os grandes gênios conseguem prosperar (intelectualmente falando) em meio à adversidade.
Contudo seu biógrafo não deixa dúvidas sobre a precariedade da situação do literato:


“Poe quase nada ganhava. Era um período de pânico ficanceiro, sendo quase impossível obter-se trabalho literário. Os Poe foram acompanhados à sua nova residência pelo livreiro Gowans, que parece ter apresentado o poeta a numerosos literatos, mas com pouco resultado. A pobreza da família era agora extrema.”

E assim, em 1838 o escritor com sua família já se achava em Filadélfia. Era quase uma vida errante de ciganos, Poe não tinha um pouso certo. Nos anos que se seguiram, porém, sua produção foi notável e sua luta por uma situação melhor prosseguia tenazmente. Em algumas ocasiões ele conseguia ganhar dinheiro, é certo. Mas a sua grande chance foi desperdiçada estupidamente, já se vê:

“Em breve tornou-se livre-atirador, escrevia onde e quando podia; tentou obter um emprego do governo, na alfãndega de Filadélfia, por meio de amigos de Washington, e de novo tentou lançar seu próprio magazine, agora projetado como “O Estilo”. Estava prestes a ser bem sucedido, mas uma visita a Washington, em março de 1843, quando infelizmente se embebedou e exibiu sua fraqueza, mesmo na Casa Branca (sic!), arruinou suas mais profundas esperanças. Até mesmo seu melhor amigo, F.W. Thomas, novelista secundário e político do tempo, nada mais podia fazer por ele. O infortúnio de agora em diante lhe seguiria os passos.”

Parece-me evidente que Hervey Allen gostaria de contar algo diferente, por mais brilhante que seja sua biografia; mas a história pessoal de Poe entristece quem dela se ocupa. Nós nos acostumamos não só a admirar, mas a amar, na distância do tempo, o escritor que nos deixou tão extraordinário legado. O relatório prossegue, cada vez mais próximo da tragédia final:

“Virgínia, sua esposa, estava tuberculosa e tinha frequentes hemorragias. Ele mesmo começou a recorrer à bebida mais do que antes. Há também algumas provas de que se haja dado ao uso do ópio. Foi mandado para Saratoga Springs para recuperar a saúde. Voltando a Filadélfia, quase morreu duma lesão cardíaca.”

Em 1844 Poe retornou a Nova York, em busca de alguma porta que se lhe abrisse. Sua tia procurava ajudá-lo. Por essa época, graças principalmente ao lançamento de “O corvo”, o nome de Poe começou de fato a ganhar projeção nacional, sem que isso implicasse em enriquecimento. Afinal, no lugarejo de Fordham, perto de Nova York, Virgínia morreu, em 1847. Infelizmente a condição de alcoólatra de Poe parece ter-se agravado, contribuindo para sabotar sempre seus esforços e seus projetos. Uma nova bebedeira, em Filadélfia, como que avisou que a morte andava a rondá-lo.

“Advertido pelo que fôra uma quase aproximação da morte em Filadélfia, Poe lutou com todas as forças que lhe restavam para abster-se da bebida, e durante algum tempo conseguiu-o.”

Tendo ficado noivo de certa Elmira Royster, a quem amara na mocidade, Poe parecia estar seguindo o rumo da reabilitação; mas então aconteceu a sua trágica passagem por Baltimore e os acontecimentos misteriosos que o envolveram e o levaram finalmente à morte no domingo, 7 de outubro de 1849, com apenas 40 anos. Suas últimas palavras foram: “Senhor, ajudai minha pobre alma”.
Terminando sua obra em agosto de 1927, Allen (quase xará de seu biografado) encerra com esta frase:


“E assim morreu, como vivera — em grande miséria e tragicamente.”