Os últimos momentos de Händel por Stefan Zweig
O livro “Momentos estelares da humanidade” de Händel, que estou lendo numa edição numa edição em espanhol, é uma pequena maravilha. São 14 relatos biográficos sobre grandes vultos da História humana: Cícero, Goethe, Napoleão, Tolstoi, Vasco Núñez de Balboa. Cada relato é uma pequena obra-prima literária. Zweig cava fundo na humanidade de cada personagem escrevendo relatos que comovem e engrandecem.
Traduzo aqui o final do relato sobre Händel nos seus últimos dias:
Desde então já nada conseguiu dobrar Händel; nada pôde abater o ressuscitado. A companhia de ópera que ele havia fundado em Londres faliu, os credores lhe acossavam outra vez, porém ele se mantinha firme e sereno. Resistia a todas as contrariedades sem preocupar-se. Sem deixar-se abater, continuava o sexagenário o seu caminho balizado pelos marcos de sua obra.
Apresentavam-se-lhe dificuldades, porém sabia vencê-las. A idade foi minando suas forças; porém com seu incansável espírito foi prosseguindo seu trabalho criador. Chegou inclusive a ficar cego, de repente, enquanto escreveu o seu ‘Jefte’. Mesmo sem visão, como Beethoven sem audição, seguiu compondo mais e mais, tenaz e incansavelmente. E quanto maiores eram seus triunfos na terra, mais se humilhava diante de Deus. Como todo autêntico artista, não se envaidecia por suas obras. Porém havia uma que lhe era especialmente querida: ‘O Messias’, e justamente por agradecimento, porque ela o havia salvado de seu profundo abatimento, porque com ela tinha conseguido sua redenção.
Ano após ano, era interpretada em Londres. E sempre dedicava a arrecadação completa, umas quinhentas libras, à melhora dos hospitais. Era o tributo do homem são aos enfermos; do libertado, a os que sofriam prisão. E precisamente com essa obra, com a qual havia saído do inferno, queria despedir-se. Em 6 de abril de 1759, gravemente enfermo, aos setenta e quatro anos de idade, pediu que o levassem ao Palco do Convent Garden. E ali se erguei entre os fiéis, gigantesco e cego, entre seus amigos músicos e cantores, que não podiam resignar-se a ver seus olhos apagados para sempre. Porém ao chegarem a seu encontro as ondas sonoras, ao expandir-se o vibrante júbilo de centenas de vozes proclamando a Grande Certeza, iluminou-se seu fatigado rosto e ele transfigurou-se. Agitou os braços levando o compasso, cantou com tanto fervor como se fosse um sacerdote que estivesse oficiando seu próprio réquiem e orou com todos por sua salvação e a de toda a Humanidade. Só uma vez, quando, na passagem “as trombetas soaram”, deixaram estas ouvir seus acordes, estremeceu-se e olhou para o alto com seus olhos cegos, como se já estivesse preparado para apresentar-se ao Juízo Final. Sabia que tinha cumprido bem sua missão. Podia comparecer diante de Deus com a serenidade do dever cumprido. Seus amigos, muito comovidos, levaram-no para casa. Também eles tinham a impressão de que aquela tinha sido a sua despedida. E já na cama, seus lábios murmuraram suavemente que morreria na Sexta-Feira Santa. Os médicos não conseguiam compreendê-lo, pois ignoravam que aquela Sexta-Feira Santa caia em 13 de abril, ou seja, o dia em que a pesada mão do destino se havia abatido sobre ele e o dia da estréia do ‘Messias’. As datas coincidiam: aquela em que morrera e aquela em que ressuscitou, para ter a certeza de sua ressurreição para a vida eterna. E, com efeito, como conseguira tudo com sua poderosa vontade, conseguiu também atrair à morte segundo seus desejos. Em 13 de Abril, Händel perdeu as forças por completo. Já não ouvia. Aquele enorme corpo jazia imóvel em seu leito como um deserto habitáculo. Porém, assim como as vazias conchas marinhas reproduzem o rumor das ondas, seu espírito estava inundado por uma música inaudível, mais estranha e grandiosa do que quantas se já se tenha ouvido. Lentamente, seus prementes acordes foram liberando a alma do corpo gelado, para elevá-la até as regiões etéreas, como som eterno, às esferas eternas. E no dia seguinte, antes que os sinos da Páscoa anunciassem a ressurreição, sucumbiu em Georg Friedrich Händel aquilo que havia de mortal.