Um olhar na multidão

Um Olhar da Multidão

Tenra infância

Minha mente remonta ao final dos anos 80, lembro que meu pai era dono de um bar em um bairro da periferia de Itaperuna. Naquela época comecei o conhecer o horror que se esconde por de trás da figura humana, e infelizmente este conhecimento se deu em um lugar onde se espera receber carinho, apoio, respeito e afeto, o meu lar.

Naquela época aos 5 ou 6 anos de idade pude notar variações de humor no meu pai. Havia dias normais onde ele era cordial com todos, porém outros onde ele era recluso, agressivo nas palavras, era distorcido. Mesmo às vezes em que nós como família saíamos para comer fora, haviam algumas discussões, era estranho ver os pais gritando um com o outro.

Passado um tempo, nos mudamos para um outro lugar no bairro, era um morro chamado “Morro dos cachorros”, um nome estranho eu admito. Meu pai havia começado a trabalhar como pintor de casas, era um dos melhores, assim me lembro. Em seu momento de laser ele era o goleiro do time do bairro, até hoje dizem que ele era bom goleiro também.

Meu pai havia cismado que eu deveria aprender a atirar com espingarda de chumbinhos, mas eu aos 6 anos tinha pena dos passarinhos, o que causou irritação em meu pai, ele considerava este comportamento como sendo um sinal de fraqueza, e deixou de lado estas lições.

Minha mãe era uma pessoa extremamente caprichosa, e gostava das coisas em seu devido lugar. Seu esmero em manter as coisas organizadas beirava as raias da obsessão. Ver balas de chumbinho espalhadas pela casa, só não a incomodava mais que a arma que meu pai escondia embaixo da cama.

-

Infância roubada

Já havia feito amigos no bairro, havia de certa forma de adaptado ao novo ambiente, mas era notável que algumas pessoas me olhavam com um olhar diferente, um respeito excessivo para uma criança, “eles pisavam em ovos”.

A razão disto se revelou para mim em uma manhã, dois policiais chegaram em minha casa, foram cordiais. Pediram licença e vasculharam a casa inteira, minha mãe com um silêncio fúnebre acompanhou toda a operação. Desabou em lágrimas ao saírem, a casa estava um caos.

Em uma noite meu pai chegou visivelmente alterado. O cheiro característico da droga que utilizava estava vívido, e era horrível. Ele estava tentando beijar à força a minha mãe, não entendia, apenas me sentei de costas para a parede, em meio a escuridão torcia para que a tormenta acabasse o mais breve possível, sons de agressão, choro e ofensas ainda habitam minhas lembranças, terminava ali uma parte de minha infância.

Desejei tirar a vida de meu pai após aquele dia, porém minha mãe me disse:

- Filho, independente do que acontecer ele é o seu pai, nunca vire as costas para ele se um dia ele precisar de você.

Não entendi como alguém poderia oferecer ajuda e compaixão à quem simplesmente não merecia.

-

Exodo

Após o nascimento de minha irmã, as coisa se complicaram demais, minha mãe percebeu que a situação havia chegado à um nível periculosidade extrema, conviver na mesma casa de meu pai, era nos tornar alvos.

Migramos para a casa de minha avó, ali vivi grande parte de minha vida, foi um refúgio para nós, um livramento. O preço pago foi ver meu pai pouquíssimas vezes, minha irmã não conviveu com nosso pai, havia vezes em que ele inocentemente dizia que ele era o meu pai, eu a corrigia dizendo que era nosso pai.

-

Exilio

Meu pai havia se tornado o líder do tráfico no bairro, as pessoas o temiam e ele à cada dia fortalecia sua influência. Eu me acostumei a chegar perto dele em meio aos seus “amigos” eles me recebia dizendo que eu era o filho do chefe. Mas o castelo de cartas desmoronou, foi preso e escapou da prisão, da segunda vez ele ficou preso o suficiente para que eu pudesse visitar, pude entrar na prisão e andar entre os detidos em segurança, pois estava ao lado de meu pai.

-

Ausente

Em meados, meu pai foi levado à São Bernardo dos Campos para se tratar de Tuberculose, após isto foi um longo período de tempo que sem o ver, o vi novamente em 1998 por ocasião do falecimento de minha irmã. Após isto não tive mais notícias.

Sua ausência me fez acreditar que ele já havia morrido.

-

Mudança

Em 2002 eu me converti, depois de ter vivido até então sob o catolicismo, havia aceitado o convite de minha mãe em visitar uma Igreja da Graça. Na época muitos amigos se afastaram, por preconceito, Itaperuna era predominantemente católica.

Este foi também o ano em que conheci a minha esposa, e através dela pude conhecer novas pessoas e novos amigos iguais a você Luis Leão, à quem encaminho este relato.

Graças à Deus a minha esposa foi e ainda é um bálsamo para a perda de minha mãe que ocorreu em 2003, ela faleceu em decorrência de Tireoide.

-

Pequeninos irmãos

Em 2007 tive a oportunidade de me mudar para Campos dos Goytacazes e ficar mais próximo da família de minha esposa. Trabalha em uma boa empresa, minha filha já havia nascido, e ela me ajudava a me distanciar cada vez mais de um passado sombrio.

Logo no início percebi como havia mendigos em Campos, era uma cidade grande porém os problemas eram proporcionais ao seu tamanho. Não conseguia desviar o olhar destes seres humanos que estavam em um estado de profunda desesperança, abandono e precariedade. Meu coração sentia compaixão destes pequeninos, eu não tinha como ajudar estes de uma maneira material, o que restava era olhar para eles e fazer uma oração silenciosa, me sentia culpado de não poder fazer nada.

-

Um olhar na multidão

Em mais um dia comum de 2010, eu havia encerrado o expediente, estava me preparando para ir ao curso de solda. Por alguma razão da qual não me lembro bem, me senti atraído a seguir por um caminho diferente ao que habitualmente eu percorria.

Ao longe, avistei a figura de um mendigo enrolado meio aos seus panos e trapos. Novamente meu coração se encheu de compaixão por ver uma pessoa que estava em uma situação de extrema necessidade sejam por quais forem os motivos.

Ao olhar para mais uma olhar na multidão de pessoas que me cercavam, recebi de volta um olhar que invadiu a minha alma. Reconheci imediatamente que naquele rosto vencido pelo tempo, havia um olhar que havia resistido, e uma expressão intacta se revelou para mim.

Em poucos segundo passou em meu coração sentimentos que giravam desde a compaixão ao ódio, foi me sugerido executar vingança, porém um gatilho mental me fez ouvir o apelo de minha mãe:

- Filho, independente do que acontecer ele é o seu pai, nunca vire as costas para ele se um dia ele precisar de você.

Me lembrei de sua voz instantaneamente, voltei e perguntei o nome daquele senhor apenas para confirmar, torci para não estar errado.

O senhor me disse não apenas seu nome como também o seu sobrenome.

Havia encontrado meu pai.

-

Até logo

Meu velho pai não havia me reconhecido, quando perguntei se ele sabia quem era a pessoa que falava com ele, ele balbuciou dizendo que era alguém que o havia ajudado antes em uma outra rua.

Quando me revelei, ele apenas chorou copiosamente. Percebi naquela hora que o peso de sua cruz havia se intensificado. Ele buscou me dispensar, como alguém que não se sente digno. Não poderia deixa-lo ali. Informei aos meus incrédulos familiares, a sensação era de um morto havia revivido.

Pude levar para casa, onde ele pode se banhar, vestir roupas novas e dormir em uma confortável cama. Me senti feliz à pesar de tudo, pois pude ajudar enfim a um dos pequeninos.

Fiquei também muito feliz, pois pude ver o meu pai pegando no colo a minha filha, algo impensável há poucas horas atrás.

Pedi ajuda ao meu amigo Luis Leão, que junto à igreja Batista da Coroa lhe permitiram ser integrado ao um projeto de recuperação de pessoas drogadas. Ali e ficou alguns dias.

Porém devido à sua saúde já debilitada, ele veio à óbito poucos meses depois, faleceu no dia dos pais de 2010, não antes de aceitar à Jesus segundo relado do coordenador do projeto de recuperação. Esta foi sua maior vitória. Sei que foi um até logo, poderemos nos ver com mais tempo depois.