A comadre

A comadre

de Eliane Accioly

Moema Borges e sua horda de afilhados e afilhadas, para ela, reis e rainhas. E suas comadres. E porque seres humanos somos únicos, com cada comadre um canal diferente. Simultaneamente, as comadres se reuniam umas às outras, se tornando amigas, o que Moema desejava. Até merece inventar uma etiologia para a palavra “comadre”: “co-madre(s): mulheres sendo mães juntas, dividindo, trocando, compartilhando experiências, no gerúndio”. Este é “o tempo da duração”, de Bergson. As comadres da Moema uma confraria, a irmandade feminina amando crianças, meninada bonita que crescia conosco e aos nossos olhos, festa barulhenta e divertida. “Comadre”, certamente, simbólico. O que mais importa, em torno de Moema se reuniram mulheres, homens e crianças, pessoas de diferentes credos, crenças, idades e etnias, nossa tribo. Se batismo tem o sentido de iniciação, Moema iniciadora amorosa, incentivadora nunca autoritária, reunia.

Na verdade, cada pessoa das famílias de quem se aproximava a queria. Tão amada, muitos de nossos jovens a escolheram madrinha de casamento, e ela subiu a muitos altares. Enfeitava igrejas com flores, casas e salões de festa, muitas vezes se vestindo ali mesmo, para a cerimônia e a festa. Em cada encontro cotidiano abria o sorriso de olhos verdes e os braços aconchegantes, dizendo: “Coooooomaaaaaadre”. Ou, “Amiiigaaaaaaaaaa”. Ou “Queeeeeeriiiiiiiidaaaaaaa”.

Deliciosa contadora de histórias. Em uma delas, a sua avó, recém-parturiente, amamentando sua criança. A avó morava “na Fazenda”. Diferentemente dos outros filhos, aquele bebê passava fome, o leite da mãe não o sustentava. Chorava, e a mãe não sabendo o que fazer, chorava também. Um dia, acharam a jiboia que morava no teto de madeira, e na calada da noite descia sorrateira, esgueirando-se, para sugar o leite da mulher adormecida. Alguém matou a cobra, e rasgada sua barriga o leite ainda fresco escorreu, nem tempo de talhar. Contei à comadre que esta história ganhou mundo e virou lenda, pois, primeiro soube dela através do meu avô, quando ainda pequena. A cobra que roubava o leite do bebê povoa desde então, meu imaginário.

Irmãs de eleição mútua, linhagem espiritual que se vive e não se explica, também discordávamos, no trocar ideias, no teimar. Afinal, arianas, né? E ríamos uma da outra, e cada qual de si, “Nooossaa Senhoora!” A concepção de vida e mundo, esta sim, da mesma cosmologia. Cada despedida continha e germinava o próximo encontro.

Requintada no se vestir, nunca escondeu procedências e endereços, dava-os de bandeja, e seus fornecedores e fornecedoras passavam a fazer parte da tribo de amigos, do bando. Na cozinha arrasava, em pouco tempo na mesa um banquete, fosse comida goiano-mineira, ou das mais sofisticadas, lanches, almoços, jantares. Inventava doces, compotas de frutas, bolos tortas, biscoitos. Chamava de “comida de Deus”. Em meio às delícias culinárias correram saraus de literatura e artes, sua paixão. Cercava-nos de beleza. Arquitetou a reforma do apartamento em que moramos hoje, o compadre dela e eu. Adorou nos ter na Avenida Paulista. Bastava um telefonema para combinar um filme na Reserva? Um café na Cultura, ou na Fnac? Gostava muito da livraria Martins Fontes, sentar numa das poltronas com vários livros no colo, impaciente para passar os olhos e descobrir uma preferência. Tomar o metrô e comprar o pão dos beneditinos? E lá íamos braços dados falando e rindo de qualquer bobagem, tecendo sociologias do povo com o qual a gente cruzava, e daquilo que víamos. Tecelãs tramando e urdindo, nos sentindo parte das horas, das pessoas e acontecimentos. Vivas na vida, lúdicas, e levando viver muito a sério atravessamos o tempo. Em nossos verdes 14 anos saíamos juntas, em Uberlândia, nossas famílias se conhecendo muito antes de existirmos; depois jovens universitárias, jovens mães, mais tarde, a busca de lugares e ofícios, caminhos diferentes e compartilhados, palmilhamos juntas até aos nossos 71. Provar o pão do Mosteiro de São Bento não deu tempo. Nosso último filme, “Minhas tardes com Margueritte” (Margueritte com dois tt, como dizia Germain), quando dividimos uma torta de maçã e tomamos caputino, na Reserva Cultural. Adoramos o filme. Na saída, cruzamos com astros homens e mulheres lindos e a rigor que entravam em fila e aos pares, por um tapete vermelho e felpudo, era a noite inaugural do festival do cinema francês em São Paulo. Brinquei com Moema que o tapete era para nós duas, e ela disse “Très chic!!!!!!!!”, entre risadas.

Não é possível falar da Moema no geral, ou na terceira pessoa, ela não foi abstrata nem impessoal, e tenho certeza, cada amiga, amigo, comadre ou compadre, terá infinitas lembranças e histórias para contar. E os afilhados e afilhadas? Nossa Moema de Freitas Borges continua em cada um de nós, é parte.