A honrada família de Zé Tarzan
A família de Zé Tarzan
Raimunda Maria da Conceição, conhecida como Dona Raimunda, nasceu no dia 2 de fevereiro de 1920, em Caraúbas-RN e chegou a São Gonçalo na década de 1930, no período da construção do açude, quando ainda era bastante jovem, fugindo da casa dos pais, Francisco Soares do Nascimento e Francisca Maria da Conceição. Quiçá tentando se evadir da miséria, talvez indo de encontro à desdita, em terras totalmente ignotas.
Talvez, caprichos dos seus próprios instintos ou um destino previamente definido possam explicar a fuga do seio familiar. Também é provável que tenha se inebriado ao ouvir falar em terras dadivosas do sertão paraibano, todavia não ideava que mil dificuldades a esperavam na nova vida.
Em São Gonçalo, sob o manto do flagelo, teve os seus quatro filhos, que criou com muito zelo e sacrifício, com o ofício de lavadeira, haja vista as enormes dificuldades financeiras e a forte discriminação imposta a uma mãe solteira no interior do Nordeste, nas décadas de 1930 a 1940. O sertão, arrodeado de mandacarus, juremas, aroeiras, xique-xiques, angicos, juazeiros e palmas, aplaudia, visto ser a mais forte testemunha desta pequena guerreira.
Dona Raimunda ainda tivera mais doze gestações. No entanto, sofrera alguns abortos e perdera algumas crianças vitimadas pela mortalidade infantil, que era tão presente no interior do Nordeste naquelas eras de calamidade. Outra criança recém-nascida, do sexo feminino, fora adotada por uma família de Fortaleza. Para o seu imenso desgosto, morreria sem tornar a ver a filha.
Nos períodos de seca forte, em que o governo disponibilizava as frentes de emergência nos sertões, aproveitava para ganhar um dinheiro extra com a venda de lanches para os sofridos cassacos sertanejos, junto com a velha amiga, Dona Maria Rosa. Aqueles eram tempos extremamente difíceis.
Importa destacar que nos saudosos tempos das décadas de 1930 a 1970, sobressaía-se uma classe de trabalhadoras sofridas, aguerridas, que laboravam o dia todo, desde o nascedouro do sol até a sua partida rumo ao horizonte. A imensa trouxa na cabeça e o sabão na mão, mulheres simples, maltrapilhas, percebendo uma mísera remuneração e sem nenhum direito trabalhista, as lavadeiras de roupas exerciam felizes e cantantes o seu árduo ofício no majestoso Rio Piranhas.
Em São Gonçalo, havia dois pontos clássicos no rio que eram utilizados pelas lavadeiras, estando um localizado entre as antigas pontes de ferro e de cimento e outro um pouco abaixo da ponte de tábua. Os bancos de areia grossa, as rochas e os pequenos arbustos das redondezas serviam de varal. Eram o quaradouro. O tempo era breve para tanto trabalho, desta feita o simples almoço era servido no próprio local, em pequenas sombras às margens do rio.
O seu escritório era o dorso do Rio Piranhas. A sua mesa de trabalho eram as rochas, os bancos de areia, as plantas, os pequenos arbustos ressequidos. O ambiente era climatizado por um escaldante sol de 40 graus. Com a inexorável cumplicidade da natureza, eram perfeccionistas: tinham mania de limpeza.
Os pequenos peixes e os jovens camarões, que escapavam do açude, não gostavam delas. Denunciaram ao chefe do perímetro que elas trocavam sabão por oxigênio. O pior é que era verdade. Para amenizar a situação, o chefe mandou instalar um cano de água ao lado do sangradouro, para levar um pouco de água e oxigenação do açude aos poços do rio. No entanto, quando a recarga do açude era superior a sua capacidade, não tinha problema, pois a água excedente levava o sabão do Piranhas direto para o Atlântico.
De cima das pontes, a vida em movimento assistia e apreciava a encantadora lida das lavadeiras desceletizadas. Mas que pena. Aos poucos, a profissão foi sendo extinta do sertão, tragada pela mão perversa da tecnologia, pelo desencanto da modernidade.
Entre uma lavagem de roupa e outra, de sol a sol, Dona Raimunda ia conduzindo a sua vida, às vezes, sendo conduzido por ela. A pobreza era a sua companhia mais fiel. A fome era uma visitante ingrata, mas insistente e perspicaz, detentora de uma assiduidade familiar.
No entanto, as amarguras e os infortúnios que se abateram sobre a sua vida, aos poucos, seriam apagados por atitudes, acontecimentos e sentimentos compassivos. De vez em quando, via o desabrochar de novos seres de suas entranhas. Pressentia a desesperança, aos poucos, sendo dissipada...
Acreditava que o acaso, que tinha a fatalidade como aliada, seria modificado. Nos poços de água do leito, muitas vezes seco, do Rio Piranhas, onde exercia o honrado ofício, os ventos sussurravam em seus ouvidos dias melhores para a família. E a esta brava filha biológica do sertão potiguar, cria adotiva do oeste paraibano, não restou alternativa, senão acreditar.
E assim, a fé e a esperança se tornaram os senhores de sua vida...
Em 1936, nasceu o seu filho mais velho, Antonio Soares. Por volta do ano de 1956, Antonio viaja em busca de trabalho na cidade de Recife e depois ao Rio de Janeiro, onde trabalhou na Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro, nas décadas de 1960 a 1990. Era casado com a Senhora Suely, com quem teve uma única filha, de nome Marta. Antonio retornou apenas duas vezes a São Gonçalo, ou seja, nos anos de 1972 e 1975. No primeiro ano, a emoção foi tão grande, que a sua mãe chegou a desmaiar, tamanho fora o choque, ao rever o filho depois de mais de quinze anos sem contato. Em 1975, em sua segunda e última visita, Antonio levou a mãe para conhecer a cidade maravilhosa. Logo em seguida, Zé Tarzan viajou à capital fluminense para trazer a mãe de volta à Paraíba. Na viagem, Zé Tarzan aproveitou para conhecer as belezas da cidade fluminense, bem como a imponência da capital paulista.
Em 1939, nasceria a filha Maria de Lourdes dos Santos. Em 1967, Lourdes casou-se com o Senhor Júlio Emídio dos Santos, conhecido como Chimarrão, apelido do palhaço que ele representava, quando era artista circense, entre os anos de 1956 a 1980.
No exercício da função de palhaço, notabilizou-se pelo uso do bordão: “se deita, Frederico”, em que atirava ao chão um inseparável boneco de pano a que atribuía o nome de Frederico.
Chimarrão nasceu no dia 31 de março de 1943, na cidade do Iguatu-CE, um mês após o seu pai abandonar a família. Em 1952, perderia a sua mãe, passando a ser criado pelo irmão mais velho. Eram sete irmãos.
Iniciou a atividade circense como trapezista voador, aos 13 anos de idade. Sua companheira também se tornaria trapezista circense e o seguiria em todas as andanças pelo interior nordestino. Dentre os circos de que o casal participou, destacam-se: Veneza, African Circus, Borborema, Bonde, Gina, Arte Palácio, Novo Americano, Rex, Coronel Zé Pelado...
No ano de 1966, quando o Circo Novo Americano, dirigido por Carioca, se apresentava em Fortaleza, teve o prazer de assistir a um show do compositor Humberto Teixeira, na praia de Iracema.
O Circo Novo Americano foi instalado a partir dos “restos mortais” do Gran Circus Norte-Americano, que estreou em Niterói, em 15 de dezembro de 1961, e era considerado um dos maiores e mais completos circos da América Latina.
No espetáculo do dia 17 de dezembro de 1961, três ex-funcionários temporários da cidade, insatisfeitos com o dono do circo, por questões trabalhistas, resolveram atear fogo no recinto. Com cerca de 3000 pessoas na plateia, faltando 20 minutos para o espetáculo acabar, começou o incêndio. Em pouco mais de 5 minutos, o circo foi completamente devorado pelas chamas. Na triste tragédia, 372 pessoas morreram na hora e, aos poucos, vários feridos morriam, chegando a mais de 500 mortes, das quais, a maioria eram crianças. A fuga de um elefante da sua jaula acabou por salvar muitas vidas, visto que o animal arrebentou parte da lona, abrindo caminho para um maior número de pessoas escaparem.
Em 1962, teve a honra de receber os cumprimentos do gênio Patativa do Assaré, durante uma apresentação circense no distrito de Cachoeirinha, terra natal do poeta que pertence ao município de Assaré.
Por volta do ano de 1964, Chimarrão era artista do Circo Rex, de propriedade do Senhor Geraldo Gouveia, que se apresentava em Baraúna-RN. Depois de algumas semanas na cidade, com o movimento cada vez mais fraco, o circo não pode partir porque estava “atolado na praça”, ou seja, sem condições financeiras para se deslocar para outro lugarejo.
Certo dia, porém, o grande Luiz Gonzaga retornava de uma apresentação na cidade de Mossoró e como era um apreciador da arte circense resolveu dar uma parada para observar o movimento. Ao chegar, percebera que o proprietário era um velho conhecido. Conversa vai, conversa vem, e eis que o Rei do Baião decide aprontar uma com o amigo:
- Me anuncie para hoje! - Ordenou Luiz Gonzaga.
E assim ocorreu. O anúncio do show, em todos os recantos da cidade, foi feito no seu próprio veículo do forró. O circo teve a sua lotação esgotada e o espetáculo recheado com muito forró foi um sucesso total. Em um único dia, o circo arrecadou mais dinheiro do que em todos os outros. Ao final, Luiz Gonzaga não aceitou receber nenhum centavo do amigo e seguiu tocando sua sanfona Nordeste afora, pois, sua vida era “andar por este país, até um dia poder ter um descanso feliz”. Gonzagão fizera da sua vida uma infatigável arte de prestígio à cultura do seu povo. Sempre respaldado pela sua sanfona.
Gonzaga foi a representação da alma do sertão, a essência máxima de um povo e de uma cultura extraordinariamente rica. O velho “Lua” trouxe para a música a simplicidade e o bucolismo de um sertão que marcou a infância e a juventude do eterno cantador que nunca esqueceu sua terra, o chão sagrado do semiárido. (CARDOSO, 2013).
Com indicação de Otoniel Maia de Vasconcelos (*13.06.1921 +1999), em meados da década de 1960, Chimarrão e equipe faziam apresentações no saudoso cinema de Antonio Luiz, em São Gonçalo. Os animados shows continham muita música, comicidade e alegria.
Do casamento de quase cinco décadas, que duraria até o falecimento de Lourdes, em 15 de novembro de 2015, em Juazeiro-BA, depois de vários derrames cerebrais, resultaria a filha única, Selma. Chimarrão era contemporâneo e compadre do palhaço Guri, padrinho de Selma. Guri, que possuía grande popularidade no interior do Nordeste, era casado com a cantora circense Ninita, e irmão de Ciana, também cantora. Todos estes artistas se apresentavam em São Gonçalo nas áureas décadas de 1960 e 1970.
Cidadão decente, Chimarrão possui como marca registrada o temperamento pacato e a alegria contagiante. Apreciador de uma boa música, gosta de tocar de violão e de cantar algumas canções, notadamente de seresta (Altemar Dutra, Agnaldo Timóteo, etc.). Zé Tarzan o tem como um verdadeiro irmão. Possui também uma forte relação de amizade com os irmãos de Nina, especialmente com João, Jucélio e Zé Galdino.
O filho mais jovem de Dona Raimunda é o Senhor José Braz (Zezinho), cujo pai é o Senhor Manoel Braz, seleiro do DNOCS. Nascido no dia 19 de março de 1947, Zezinho foi casado com várias mulheres, de vários estados do Nordeste, com quem teve mais de vinte filhos. Atualmente, reside em uma casa simples em Juazeiro-BA.