"O Importante é Ter Capital" = Memórias de Um Vendedor de Livros


      No início do mês de dezembro de 1967 a situação financeira de minha família estava pra lá de crítica. Meu pai doente, sem poder exercer suas funções extras além do Banco do Brasil, e nós, os seis filhos solteiros morando em casa, sendo quatro ainda pequenos que em nada poderiam ajudar a não ser em aumentar as despesas sempre crescentes.
   No dia primeiro deste mês inesquecível, eu e meu irmão um ano mais novo deixamos o carro em casa, por falta de gasolina, e fomos para o centro da cidade de ônibus.
   Ao chegar ao centro da cidade, mais precisamente à rua Líbero Badaró, constatamos que nosso capital disponível para o trabalho era a “espetacular” quantia de Cr$ 5,00 (cinco cruzeiros!), e mais uns trocadinhos para a condução de volta caso desse tudo errado naquele dia.
- Cinco cruzeiros...o que será que dá pra gente comprar com isso no fornecedor?
- Sei lá, vamos dar uma chegada até lá e ver se chegou alguma novidade. De repente...
      O fornecedor ficava na rua São Bento, uma paralela da Líbero, apenas um quarteirão de distância de onde estávamos, e era, naquele tempo, o maior fornecedor de coleções de livros do país.
Entramos no velho prédio, subimos ao andar onde ficavam amontoadas milhares de coleções de livros, e vimos que tudo estava bem acima de nosso micro-capital. Tudo era o dobro ou triplo do que possuíamos.
    Já estávamos quase desistindo e indo embora, quando o Jácomo, o atacadista-mor, nos chamou de lado:
- Tenho uma barbada aqui espetacular pra vocês dois, que sabem vender e aproveitar molezas. Dá uma olhada nisso...
    Demos a olhada e vimos à nossa frente uma coleção em cinco volumes encadernados, não muito bonita, mas novinha, cujo título era “Aventuras na Terra, Mar e Ar”, do capitão Mayne Red.
   O vermelho um tanto quanto fosco da capa e o jeito meio mal ajambrado da obra não me despertaram aquele entusiasmo na hora, mas, graças a Deus, meu irmão foi mais esperto e se entusiasmou logo:
- Fernando, deixa de ser besta. Nós vamos lavar a égua com isso aqui, meu.
   Investimos nosso micro-capital na compra daquela obra, que na promoção estava custando exatamente nossos cinco cruzeiros e, andando apenas meio quarteirão, chegamos à agência centro do Banco do Brasil.
   Um minuto ou dois depois, a primeira venda. Dez cruzeiros. Capital dobrado. Compramos duas coleções correndo e voltamos. Cinco ou dez minutos depois tínhamos vinte cruzeiros de capital.     
   Já havíamos quadruplicado nosso vírus de capital.
   A cada venda efetuada o estoque sendo dobrado. Eu nas vendas e meu irmão nas “buscadas”. Terminamos o dia com Cr$ 600,00 nos bolsos.
   Cento e vinte coleções “Terra, Mar e Ar” vendidas no primeiro dia.
   No dia seguinte encontramos um funcionário do Banco que era dono de uma oficina mecânica. Falamos rapidamente sobre a obra e ele nos encomendou cinqüenta delas para brinde. Não pediu desconto e ainda adiantou o pagamento para que nos servisse de capital com a condição de que entregássemos a encomenda na oficina dele, que ficava na Aclimação.
   No segundo dia chegávamos a duzentas e noventa e cinco coleções vendidas só dentro daquela agência do BB-centro. Eu vendendo e meu irmão buscando. Felizmente o estabelecimento do fornecedor era quase colado ao Banco e ele conseguia pegar de dez em dez coleções, a pé.
   No terceiro dia chegamos ao fornecedor com o carro (naquele tempo ainda se trafegava de carro por todas as ruas que agora são calçadões na região central) e o lotamos com o que nos foi possível, e a partir daí meu irmão pôde ficar parado com o carro na frente da portaria do Banco e a coisa deslanchou de vez: os funcionários que haviam comprado só uma ou duas coleções passaram a encomendar várias de cada vez para atender os pedidos dos amigos e familiares, e aí foi um tal de entregar cinco pra um, dez pra outro, quinze pra outro, que o negócio se tornou uma loucura maravilhosa. Era suadeira e correria o dia todo, ainda mais que tínhamos inventado de entregar todas já embaladas em papel de presente para o Natal cada vez mais próximo, como um incentivo de vendas a mais.
   Em nossa casa minha mãe, os irmãos, nossas namoradas e meu pai, encarregavam-se das embalagens em papel colorido e deixavam tudo pronto pra gente buscar correndo de carro e voltar para o banco, que naquele tempo funcionava das oito da manhã às seis da tarde. Batíamos recordes de velocidade no percurso centro-Vila Mariana-centro, e depois das seis voltávamos mortos de cansaço e dirigindo bem devagar até em casa.
   Ao perceber nosso sucesso na venda daquela obra, Jácomo, o fornecedor, que ainda não tinha adquirido o péssimo hábito matreiro de ir aumentando o preço à medida em que a gente vendia muito, reservou seu estoque só para nós dois.
   Vendíamos muito o dia todo e à noite recomprávamos quase que a totalidade do dinheiro apurado, gastando apenas com o mais urgente na casa.
   Só paramos no dia 23 de dezembro. Paramos com um total de 3.250 coleções vendidas, sendo que mais de noventa por cento dentro do BB-Centro.
  Êta Natal inesquecível!! Tudo pago. Dinheiro no bolso. Capital para o próximo ano. Presentes para todo mundo, fartura na mesa, mercadoria estocada e muita esperança para o ano seguinte. E tudo iniciado com o fabuloso capital de Cr$5,00 que hoje em dia, atualizado, deve equivaler aí por volta de R$ 5,00...
  Naqueles vinte e dois dias entregamos também muitas dezenas de outras obras para presente, mas nem as levamos em conta. Pagaram as despesas.
Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 06/08/2007
Reeditado em 06/08/2007
Código do texto: T594795
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.