Neném Relojoeiro
Neném Relojoeiro era íntegro, não inteiro. Faltavam-lhe um braço e o polegar, o indicador e o médio da mão restante. E consertava relógios, usando ferramentas minúsculas com destreza inimaginável.
Sua dolorida história, contou-ma um dia desses o vovozinho, José Rodrigues, que foi barbeiro e seu vizinho por muitas e miúdas décadas no Beco dos Canudos.
Neném fora vítima de um acidente de trem de ferro, numa singularíssima ocorrência: numa parada breve na estação do Velho da Taipa, a meros quatro quilômetros de Pitangui, descera da composição para comprar umas famosas broas que lá se vendiam então. Com o trem prestes a partir, correu pela plataforma em sua direção, arfante mas triunfante com o saquinho de broas à mão. Sem se dar conta de onde pisava - a rigor, quase levitava, tropeçou nuns sacos que se encontravam em seu caminho e, desequilibrado, foi cair sob os trilhos.
A cena que se seguiu, com o resgate de um corpo inerte e banhado de sangue - já despossuído do saquinho de broas - foi mais que dramática, tétrica: um militar, entre os atônitos circunstantes chegou a clamar pela misericórdia de alguém que acabasse com tamanho sofrimento, que, além dos braços, contudira também a cabeça da vítima. Uma voz, no entanto, ofereceu o contraditório: mas quem sabe ele ainda tem chance de sobreviver?
E sobreviveu. Para trabalhar, casar-se, constituir família - onde todos os filhos começam por M, e para demonstrar os prodígios de uma mente determinada, por convicção e provas.
Sempre usando terno e gravata, de preferência da cor cinza, não cheguei a vê-lo consertando despertadores, mas fui encontrá-lo trabalhando no SAPS, contando histórias, jogando cartas e finalmente, convertido evangélico, a profetizar o fim dos tempos. Numa broa.