Memórias - Parte 1
Ao despontar o ano de 1932, despontava também para a vida uma menina como tantas outras, mas que sempre teve vontade de ver sua história narrada. Hei-la:
Nasci numa casa de cinco cômodos, água canalizada, luz elétrica, quintal plantado, etc., enfim, num bairro operário. Descendia de um casal modesto, de instrução primária, de parcos recursos que moravam com a mãe dele e um casal de irmã e cunhado. O meu nascimento foi motivo de muita alegria para a mamãe, pois antes tivera outros três filhos e morreram; para a minha avó paterna que serviu de parteira e para a titia, que sendo casada há muito tempo nunca tivera um filho, então se dedicou a mim, sendo ela quem escolheu o nome indígena; o papai relutou em me aceitar, pois preferia uma criança do sexo masculino, mas logo passou a zanga e também se dedicou a mim.
Desde cedo mostrava-me muito esperta e inteligente, pouquíssimas vezes fui castigada pelos meus pais. Meu gosto predileto era ver revistas, já adulta ainda podia citar as fotos vistas numa revista quando tinha apenas três anos de idade, pois se referiam à batalha da Revolução de 1930-1932.
No ano de 1934 aconteceu a tragédia que assaltou a todos como o falecimento repentino do titio. Ficava ouvindo dos sentimentos da titia dedicada, agora viúva; indo estes comentários e choro até 1936, quando a morte veio buscar também a viúva inconsolável, nos seus 37 anos. Neste ambiente de luto, continuei vivendo, pois era mais um ente querido que partia da minha avozinha, que já tinha o coração amargurado por tantas perdas, visto que ficara viúva aos 35 anos com seis filhos vivos dos 14 nascidos (sendo uma menina de 21 dias apenas e que aos 11 anos também morrera).
Mas ao romper o ano de 1937 deixei as tristezas de casa rumo à escola primária com apenas cinco anos e juntei-me à criançada do meu bairro, sem esquecer meu irmão colaço que juntos fazíamos a mesma caminhada diariamente, pois éramos vizinhos. Estava tão entusiasmada com a escola que com um mês de aulas já lia alguma coisa. O desejo que eu demonstrava e nutria era um dia ser professora.
Meu pai, porém não tinha um emprego e isto muita dificuldade trazia. Devo salientar que nasceram mais cinco irmãos sendo que três morreram em tenra idade. Porém junto ia crescendo um irmãozinho muito parecido comigo, sendo um ano mais novo mostrava-se mais forte e menos inteligente.
A mamãe tinha que trabalhar numa indústria de tecidos, mantendo assim a família precariamente, garantindo a moradia que era da Cia., enquanto a vovó cuidava das crianças dando-lhes bons ensinos concernentes à religião, à moral, aos bons hábitos, pois esta era uma serva de Deus muito fiel. Em 1939, nascia mais uma irmã. A professora veio visitá-la e deu-lhe o nome, também indígena.
Em 1940, aconteceu algo que iria mudar-nos o viver. A mamãe resolveu mudar-se para um bairro próximo, porém muito pobre, para uma moradia própria, mas sem nenhuma condição de higiene, sem o mínimo conforto. O papai como não era empregado fazia os mais diversos serviços rústicos, tais como pescar, lenhar, abrir pedreiras e vender pedras para construções, negociar animais, mas o seu passatempo era jogar cartas ou arrumar mulheres de “vida fácil”; estes defeitos trouxeram uma série de dificuldades. A mamãe trabalhando, o papai se ausentando, a vovó ficara na outra casa, agora, com outro filho, eu então com apenas oito anos era responsável pela limpeza da casa, preparo rudimentar dos alimentos, lavagem das roupas (isto era feito numa lagoa, onde abundavam as cobras, além dos bois bravos que ficavam naqueles caminhos, pois era uma pastagem). A água potável era transportada por mim em latas de 20 litros trazidas na cabeça; tinha ainda que ir buscar nos pastos os animais pertencentes a meu pai, cuidar das galinhas que eram em número de várias dezenas, providenciando a ração que era trazida também duma fábrica de goma ou de azeite de dendê e vigiando-as para que não se perdessem os ovos naqueles matagais abundantes, regando as plantas com água trazida de outro local e muitas vezes a terra muito seca deixava que todo o líquido escorresse sem, contudo molhar a plantação de horta. Além desses, tinha o encargo de ir fazer as compras e lavar os cachorros. Com todos esses afazeres não havia tempo de ser uma aluna assídua, porém nas horas que me sobravam lá estava eu com os meus livros muitas vezes adormecendo com eles abertos em redor. A mamãe contente chamava a vizinha e dizia: “olha lá como ela gosta de estudar!”.