O enigma do Nite Karbons

Recentemente recebi um peculiar e-mail que, apesar de não dizer muito, me deixou bastante curioso:

“Meu caro,

Foi um delicioso acaso ter encontrado sua página na Internet, onde escreve tão belas coisas. Gostaríamos muito que um escritor – e crítico – tão promissor dissesse uma coisa ou duas sobre nosso trabalho; se nos passar seu endereço, mandaremos um exemplar de nosso álbum.

Respeitosamente,

– M.D./A.B.

(NITE KARBONS)”

Por mais que goste de trabalhar, também gosto de ter a certeza de que estou trabalhando para alguém de confiança, e que obterei algo em troca. Respondi:

“Poderiam antes dizer quem são vocês, e se pretendem me pagar?”

A tréplica veio não muito tempo depois:

“Meu caro,

Estamos dispostos a conceder-lhe uma entrevista, o que deveria valer muito mais do que qualquer remuneração em dinheiro.

Respeitosamente,

– M.D./A.B.

(NITE KARBONS)”

Tirei algum tempo para pesquisar a respeito desta suposta banda, mas em todos os lugares pelos quais procurei nada consegui encontrar sobre “Nite Karbons” ou “M.D./A.B.”; talvez fosse algum novo grupo em ascensão buscando por alguma divulgação, alguma publicidade – mas por que quiseram justo pedir a mim, que tão pouca experiência no assunto tenho? Por mais estranho que tudo fosse, resolvi aceitar; bem ou mal, seria eu a primeira pessoa a escrever sobre uma banda “fantasma”. Enviei-lhes meu endereço e, por alguns dias, o assunto começou a esvair-se de minha mente…

Até que recebi em minha casa um pequeno pacotinho, sem remetente, contendo um CD e um curto bilhete escrito sempre do mesmo modo demasiadamente formal:

“Meu caro,

Esperamos que goste de nosso trabalho. Ao terminar sua análise, queira enviá-la pelo e-mail costumeiro e entraremos em contato assim que possível.

Respeitosamente, etc.”

Estudei o CD com atenção: sua capa completamente preta, com as minúsculas palavras “NITE KARBONS”, transmitia uma aura do mais profundo mistério. Sem mais delongas, coloquei-o para ouvir e fui bombardeado com os mais intrigantes sons que já ouvira: uma miríade de cristalinos, etéreos sons, invocando cidades futuristas e luzes de néon. Nunca havia ouvido algo tão indescritivelmente hipnotizante em toda a vida.

No mesmo dia escrevi alguns parágrafos luminosos a respeito do álbum, e enviei-lhes por e-mail. Depois de uma semana recebi como resposta uma série de números: um telefone, que fui proibido de divulgar. “Converse conosco pelo seguinte número” era sua lacônica conclusão. Cada vez mais deslumbrado por toda aquela atmosfera confidencial, e ansioso para ver qual seria o desfecho de tudo aquilo, disquei o número e fui saudado por uma série de harmônicos bips e outros barulhos eletrônicos. Logo ouviu-se uma voz masculina inexpressiva, com um leve sotaque estrangeiro:

“É o crítico?”

“Se é que posso me considerar um…”, tentei brincar. “Então é você o misterioso M.D./A.B.?”

“Somos dois, não um”, outra voz masculina respondeu. Era tão inexpressiva quanto a primeira e dotada do mesmo indiscernível sotaque estrangeiro, mas um tanto mais fina. “Eu sou A.B.”

“E eu M.D.”

“Somos os…”

“…Nite Karbons.”

(Por todo o restante da conversa, constatei que um gostava de concluir as frases do outro.)

“E por que foram escolher justo a mim?”, perguntei.

“Apenas gostamos daquilo que é bonito”, respondeu A.B.

“Gostaríamos de dividir nossa história com alguém que merece ouvi-la”, complementou M.D.

“Note porém que nem tudo poderá ser revelado.”

“Prezamos por um certo anonimato.”

“Só quando chegar a hora tudo virá à tona.”

“E vai demorar.”

Portanto, a seu pedido, registrei sua história, omitindo os pontos que me foram requisitados.

M.D. e A.B., ao que tudo indica, são provenientes de um dos incontáveis antigos Estados comunistas da Europa, e eram importantes membros do Partido de tal país. Brilhantes cientistas e mestres da Robótica, que à época começara a engatinhar, a dupla foi responsável por várias inovações tecnológicas que, se postas em prática, teriam acarretado a vitória do comunismo e um rumo muito diferente para a História mundial, mas com seu descontentamento cada vez mais crescente com o regime de seu país, acabaram por cair em desgraça – desgraça esta tão aviltante que seus nomes foram excluídos de qualquer registro do lugar, e evitando a prisão, optaram por se evadir às escondidas.

Jurando nunca mais utilizarem seu vasto conhecimento científico e tecnológico para fins políticos, M.D. e A.B. resolveram dedicar seus dons às artes, em particular à música, que era uma das paixões mútuas da dupla. Agora livres da censura, puderam entrar em contato com a cena do synthpop, que os deixara encantados, e a princípio influenciados pelo Kraftwerk desenvolveram um potente sintetizador para que pudessem tocar suas composições. Com o passar do tempo, seus estudos foram se aperfeiçoando mais e mais até que conseguiram projetar robôs musicais tecnologicamente avançados; suas influências musicais também acabaram por se beneficiar com a introdução ao Aphex Twin, e depois Coil, e depois Ulver, e depois vários outros que os motivaram a gravar o belo disquinho que tinha em mãos programando seus robôs.

Impresso em tiragem limitadíssima e distribuído para um círculo igualmente limitadíssimo, o CD causou um grande estardalhaço à época de seu lançamento, mas ninguém conseguiu rastrear as cabeças por trás dele. Eventualmente o fator da novidade se exauriu, e o álbum tornou-se nada mais do que uma curio de status lendário no meio musical.

Ambos me garantiram que haverão de lançar outro disco, mas o processo será longo e demorado já que estão aperfeiçoando ainda mais seus robôs para que consigam replicar os novos sons que querem. Também explicaram que é raro residirem no mesmo lugar por um período prolongado de tempo, e que por “determinadas circunstâncias” são forçados a mudar constantemente seus canais de contato. Após ditarem-me exatamente o que escrever, se despediram.

E, realmente, desde então nunca mais ouvi falar dos dois músicos cientistas. Tentei mandar-lhes mais alguns e-mails, mas não mais obtive suas respostas escritas naquele tom sempre homogêneo; o número de telefone que me haviam passado também fora desativado. No entanto, ocasionalmente ainda gosto de ouvir seu agradável e futurista disco, que foi um dos melhores presentes que já ganhei – e posso confirmar o que me foi dito em nosso primeiro diálogo: a dádiva de ter com eles falado foi melhor do que receber qualquer recompensa em dinheiro.

(Texto escrito a pedido dos Nite Karbons – M.D./A.B.)

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 20/06/2016
Reeditado em 15/09/2022
Código do texto: T5672715
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.