Festa de Natal (fato real)
-“Tia, nós viemos assim porque a mãe disse que nós éramos seus presentes!”
Eliane tentava explicar à sua tia Thelma, portadora de deficiência auditiva, a razão de estarem todos fantasiados naquela noite de natal, 20 de Dezembro de 2.002. Quase gritando, sua voz saía abafada, de dentro de sua fantasia de presente, enquanto dançava com os filhos e netas para fotos e filmagens. Nada enxergavam. As fantasias os cobriam da cabeça ao tornozelo, como se fossem grandes pacotes, artisticamente fechados com um grande laço sobre a cabeça. Não faltara um grande cartão “De... Para...” apenso a cada uma delas. Era o começo apoteótico de uma das noites mais felizes de nossas vidas. Decorridos muitos anos, conseguíramos reunir toda a família, numa confraternização verdadeira, amorosa, descontraída e, acima de tudo, fisicamente saudável.
As datas festivas sempre foram, por nós, muito valorizadas. Ainda que nos reunamos, sistematicamente, uma vez por semana, estas datas ensejam, sempre, oportunidades para novos e diferentes acontecimentos. O “frisson” da véspera, dos preparativos, normalmente envoltos com alguma surpresa, num verdadeiro jogo de esconde-esconde, cria um clima antecipadamente festivo e empolgante.
Num dos inúmeros contatos telefônicos diários com sua mãe, alguns dias antes, Eliane antecipava-lhe a singeleza dos presentes, em virtude de nossa situação financeira. A resposta materna, solidária e cheia de ternura, como sempre ocorrera, soara como uma senha para mais uma surpresa.
-“Já sei o que vamos fazer! A mãe disse que não precisamos levar nada. Que nós somos seus verdadeiros presentes. E é isso mesmo o que vamos ser!”.
Estávamos reunidos à mesa, fazendo a última refeição do dia. O estalo veio por completo, fulminante. Eliane, excitada, já estava com a idéia formatada, incluindo o material, as cores e até o figurino. Paola, nossa filha mais nova, com sua explosão natural e encantadora por tudo que possa representar movimento, música e brincadeira, embebida pela idéia, começou a contribuir para o bom desfecho do projeto.
-“Então o pai tem que ser o Papai-Noel!”, arrematou Lorena, nossa neta mais velha.
E assim foi. Impressionou-me a rapidez e habilidade manual daquelas novas e improvisadas costureiras. Costureiras não, obreiras. Sim, porque as fantasias de presentes, feitas de cami ou TNT, como também é conhecido esse material, nas cores vermelho e verde, foram todas grampeadas, exceto o traje e o saco vermelho do bom velhinho. Não cometeram um erro sequer, nas quantidades compradas, nos tamanhos e corte de todas as fantasias, servindo-se apenas de si próprias como referências métricas para todos os participantes. Minha fantasia de Papai-Noel foi complementada com um cinto, ecologicamente correto, feito à base de papelão coberto com plástico preto de saco de lixo. Também a fivela assim foi confeccionada. O acaso colocou Paola diante de um gorro vermelho e uma grande barba branca artificial, encontrados em loja de R$ 1,99.
Enquanto davam cabo de sua empreitada, a rádio Ouro Verde levava ao ar, de hora em hora, variadas músicas de natal, antigas e novas, alternando ritmos e estilos, todas de muito bom gosto. Em novo ímpeto, Eliane acabara de escolher a música que daria brilho à performance de toda aquela turma, na hora triunfal.
Tudo conspirava a favor. Todos, devidamente informados e orientados a respeito da programação, guardavam segredo dos avós, em total cumplicidade.
Chegamos ao Edifício onde residem meus sogros carregados de sacolas, com presentes e fantasias, aparelho de som portátil, filmadora, máquina fotográfica e tudo o mais, planejado para aquela noite. Ao contrário de sempre, quando estacionamos o carro em vaga pré-reservada na garagem do edifício, entramos pela portaria e, sorrateiramente, nos alojamos no salão de festas, vazio, aguardando a chegada de nossa filha mais velha.
Adriana seria trazida por seu avô, acompanhada de sua inseparável companheira, a Irmã Maristela. Vinha da clínica onde se recupera das várias cirurgias decorrentes de seu atropelamento em maio deste ano, principalmente da última, recente, no pescoço. Ainda usava o colar cervical. Seu caminhar, lento e manco, como que tateante, era motivo de júbilo para quem poderia ter perdido as duas pernas, ainda sustentadas por ferros e parafusos.
Nada se comparava à sua figura, serena e feliz, lentamente, chegando-se a nós.
Estávamos com o grupo completo. As últimas instruções foram repassadas antes que subíssemos ao quinto andar, escolhido como camarim improvisado, onde todos vestiriam seus trajes para, finalmente, dirigirem-se ao corredor do nono andar, local da tão esperada apresentação. Enquanto Eliane falava sobre a ordem de apresentação do grupo e a forma como deveriam dançar, eu orientava Irmã Maristela sobre como operar corretamente a filmadora.
Precisamos dos dois elevadores para transportar tudo e todos ao quinto andar. Lá chegando, estávamos ainda com todas as sacolas e equipamentos postos ao chão do corredor, iniciando os preparativos finais, quando percebemos que aquela diversão não se restringiria ao nosso círculo pessoal. Contrastando com a costumeira tranquilidade, e quase inexistência de trânsito de pessoas no edifício, eis que das portas de apartamentos e de elevadores, surgem inúmeras pessoas surpresas e curiosas com aquela estranha invasão. Não conseguiam conter-se diante do quadro, rindo, admiradas, de nossa iniciativa.
Todos prontos, eu e Irmã Maristela deveríamos conduzir o restante do grupo, que estava às cegas sob suas fantasias, até o nono andar. Enquanto aguardava o retorno do elevador, com minha filha mais nova e as duas netas, devidamente caracterizadas, e já em ritmo de empolgação, eis que somos novamente observados por alguns rapazes que, curiosos, divertiam-se com os reclamos e requebros de minha filha, que não se apercebera de suas presenças.
-“Ho ho ho! São presentes de Natal de moradores do nono andar. Desculpem-nos”.
Nova conspiração das circunstâncias fez com que nosso elevador descesse antes de subir ao nono andar. Todo caracterizado, com um grande saco às costas, prendia com dificuldade o riso espontâneo enquanto, com voz carregada e envelhecida, aos moldes de Papai Noel, tentava explicar às pessoas que abriam a porta do elevador, com expressões mistas de surpresa e admiração, o que estava acontecendo.
Finalmente, o grande momento. Sob silêncio possível, dispusemos o grupo em fila indiana, ao longo do corredor, em ordem crescente de idade e tamanho, todos de frente para a porta do apartamento de meus sogros. Irmã Maristela com câmera a postos. Ao ligar o som com a música Feliz Natal, de Ivan Lins, nossos atores, felizes e descontraídos, davam início à sua coreografia improvisada, possível naquelas condições, aguardando a chegada dos presenteados. Papai Noel toca então a campainha.
Valdir e Ilmar abrem a porta e ficam, por alguns segundos, paralisados, um tanto atônitos, ainda que houvessem desconfiados que alguma surpresa estava por acontecer. Passado o primeiro impacto, avançam para receber seus presentes, pegando os menores ao colo e abraçando os demais. Na sequência, lentamente, vão encaminhado seus presentes móveis e dançantes, ainda em fila indiana, para dentro do apartamento.
Uma seção de fotos e filmagens, junto à grande e ornamentada árvore de natal, encerrara o presente-surpresa.
Em meio aos cumprimentos, já sem as vestes, degustávamos aperitivos, doces e salgados típicos de natal, enquanto, simultânea e divertidamente, discorríamos, sobre todo o desenrolar do projeto até aquele final. Ali, irmãos, que por muito tempo guardavam distâncias e ressentimentos, deixavam-se enredar por um amor antigo, verdadeiro, sofrido e escondido, em abraços, carinhos e gentilezas recíprocas.
A casa estava, como em todos os anos, fartamente decorada com ornamentos de natal. A mesa, já preparada para a ceia, ostentava um jogo de toalha e guardanapos com motivos natalinos, bordados especialmente para a data. Acompanhava os talheres de cada um, uma vela branca, esférica, do tamanho de uma pequena maçã.
Todos são convidados a assumir seus lugares à mesa. Apagam-se as luzes e velas são acesas. Uma chama de luz ilumina cada face, especial naquele momento. Singular, sublime e emocionante foi a convocação de todos pela Adriana, em pé, numa das pontas da mesa, comandando a oração do Pai Nosso. Seu semblante estava carregado de espiritualidade.
Ainda contagiados pela aura da recém terminada ceia, todos receberam seus presentes, ao redor da árvore, pelas mãos de nossa neta Ivana, comandada por sua irmã Lorena, que lia as dedicatórias e indicava os agraciados.