Amolador de Lua
Tio Antônio nasceu em 16, papai em 21. Esaú e Jacob, numa versão cabocla, onço-brumadense. No leito de morte o velho Velusiano, cercado dos sete filhos, dois varões e cinco mulheres, foi ao caçula adolescente Luiz que urgiu cuidar da mãe Inhana e das moças. E os olhos cerrou.
E, contrariamente ao mano menor que, por toda vida, à fábrica de tecidos se agarrou, Antônio, por seu turno - diurno e noturno - perambulou. Na própria fábrica, a fapa, que pagava o mínimo pra quem desse o máximo, conseguiu a proeza de cinco afastamentos para quatro regressos. Um desses valeu até a promessa das irmãs, Vicentina, Isabel, Rita, Conceição e Maria que por sete anos acenderam fogueira para Santo Antônio.
A Antônio nunca faltou disposição, no entanto. Tinha a voracidade de fazer - via-de-regra, sem primeiro aprender. Tentou ser sapateiro, pedreiro, pintor, e até garimpeiro, para o tormento das irmãs, que se compraziam nas caçoadas, a ponto de dona Inhana acorrer em defesa do estouvado e amado filho.
Se não havia claramente um lado happy na vida de Antônio, o lado hippie era manifesto. Tocava na banda de música, mexia com as moças e sua cachaça era o bicho. Beber e jogar, contudo, não faziam parte do seu mundo.
Fez, ademais, alguma incursão no mundo das vendas e até se sujeitou a ser servente de pedreiro, numa época em que a cacunda já não se flexionava a contento. Numa iniciativa inédita, passou a viajar vendendo tômbolas - que insistia em chamar do tombola - e premiava duas malas cheinhas de sapatos e sandálias femininos. Não chegava a prosperar nesse metier, mas o que namorava no gibi não tava...Até que um dia, por infelicidade, renumerando os bilhetes, distraiu-se e marcou um 55 duas vezes. E foi justamente aquele o número premiado pela Mineira. Teve que se desdobrar para honrar a dupla premiação.
Tornou-se mais caseiro, sem nunca deixar de cumprir suas obrigações religiosas, amorosas - avulsas, mas honrosas - e passou a martelar nas horas vagas, que eram muitas. Ia para o quintal, sentava-se num tamburete a batia pregos em toda peça de madeira, latão, sola, borracha até, que lhe caísse às mãos. Estava na fase das invenções.
Uma das mais emblemáticas que o sobreviveu foi, usando o conceito das malas de rodinhas, criar uma sacola de pano que tivesse a mesma mobilidade as Vuittons da vida. Com seções de cano pvc, presas ao fundo da sacola, creu haver reinventado a roda. E quatro duma vez.
Entretempo, descobriu a vocação do amolar. E não ficou restrito a Pitangui, percorrendo todo o Centro-Oeste das Gerais. Alguns deram notícia de sua presença até em Paracatu. Propunha-se a amolar facas, tesouras, alicates de cutícula, et cetera, movendo-se vagarosa e precariamente sobre suas havianas perfuradas para aliviar a dor dos cravos, pelas quebradas das cidades que visitava. Escasso o trabalho, não se amolava, papeava e consta até que agradava.
Embora sempre vizinho nosso, visitou-nos 9 vezes de 46 a 70, justamente no dia em que nasceu cada um dos nove sobrinhos, filhos de Luiz e Zezé. Mexia um pouco com o bebê e se mandava.
A três semanas de completar os noventa, mudou-se para a eternidade. Levou consigo todos os dentes intatos, o segredo dum amor clandestino e uma cabeça que não foi de todo compreendida. Deixou pra trás a simpatia de muitos amigos e os muitos inventos inconclusos.