Trajetória de Shoji Sakate

Luiz Carlos Pais

Há diferentes maneiras de escrever e ler uma biografia. Escrevo biografias didáticas, uma forma de valorizar atos de pessoas que mesmo não estando mais entre nós pode despertar lições que vão muito além dos bancos escolares. Este texto biográfico registra parte da trajetória de Shoji Sakate, meu sogro, imigrante japonês que faleceu com 91 anos, no dia 9 de fevereiro de 2005. Além das motivações familiares, esta biografia foi escrita com a intenção de contribuir na preservação de traços da imigração japonesa no Brasil, tomando como referência a trajetória seguida pela grande família Sakate, cujos pioneiros foram residir na região noroeste paulista e que hoje são encontrados nas cinco regiões do país.

Shoji Sakate era filho do casal Soichi Sakate e sua esposa Shiu Sakate. A família desembarcou em Santos, no dia 18 de fevereiro de 1929, ano da grande crise econômica que abalou o mundo capitalista na primeira metade do século XX. Desse modo, para entender as razões da emigração é preciso visualizar o panorama da crise econômica daqueles anos e das agitações que levariam, uma década depois, ao início da Segunda Guerra Mundial. Quando chegou ao Brasil para não mais retornar ao Japão, Shoji Sakate era um mocinho de 14 anos, estava acompanhado, além do pai e da mãe, por outras nove pessoas. O grupo familiar era formado por onze pessoas. Todos procedentes da vila de Ohaga, da Província de Okayama.

Esse grupo familiar de imigrantes foi levado a iniciar uma nova fase de suas vidas em terras recobertas por matas nativas do noroeste paulista, rumo a linha ferroviária que após transpor o rio Paraná, em Três Lagoas, atual Mato Grosso do Sul, seguia até Corumbá, depois de passar por Campo Grande. O noroeste paulista, nessa época da emigração, era uma área fortemente infestada de malária, animais ferozes e outras adversidades que os emigrantes superaram com muito trabalho e perseverança, por vezes com abnegação de alguns valores culturais e outros desafios que não cabem nas palavras. As dificuldades foram superadas pela persistência e compartilhadas por várias outras famílias da comunidade de imigrantes, os quais adquiriram lotes agrícolas administrados por uma grande cooperativa constituída por capital oriundo de vários governos provinciais japoneses.
Para fazer essas anotações foi preciso recorrer às várias fontes, documentos e fotos que foram confrontados e relacionados, uns com os outros, como se fossem peças de um grande quebra-cabeça. Para compor a história, também resgatamos memórias que ainda subsistem no imaginário de familiares agraciados pela longevidade. Ao percorrer essas memórias sobreviventes no seio familiar somos levados a vivenciar exercício do eterno retorno aos desafios vivenciados pelos imigrantes que deixaram suas raízes culturais e familiares para tentar a vida no Brasil. Mas, é importante reconhecer que todo retorno dessa natureza pode estar permeado de vazios, pois nem sempre é possível recolher fragmentos que se perderam ao longo dos anos.

Fizemos uma análise compartilhada de documentos preservados por familiares, como cartas, certidões, atestados de batismo, casamento e óbito, álbuns de fotografia e recortes de jornais. Finalmente, para compreender um pouco o cenário histórico no qual a Família Sakate emigrou para o Brasil foi preciso também ler alguns trabalhos de pesquisa, livros, artigos e teses que tratam do tema da imigração japonesa.

As anotações apresentadas foram esboçadas com a intenção de valorizar também o registro da história escrita. Com isso pretendemos contribuir para minimizar a perda das raízes culturais cujos traços ainda estão em fotografias da família. Essa opção surgiu da constatação de que os mais jovens da família não conseguem, por vezes, reconhecer os parentes fotografados e não tem por perto aquela tia mais velha que “sabe tudo” da família. Tanto o texto escrito como as fotografias ou vídeos podem ser consumidos pelo peso do tempo, tal como o registro subjetivo da memória humana. Para superar parte dessa dificuldade, os historiadores recomendam o cruzamento de diferentes registros para tornar possível a articulação entre passado e presente.

É preciso retornar um pouco mais na história porque três anos antes da Família Sakate chegar ao Brasil, em 1926, Takeo Sakate desembarcou no porto de Santos, vindo de Okayama. Estava sozinho e veio por orientação da família com a missão de verificar as possibilidades de trabalho. Gostou do que viu e das possibilidades existentes no Brasil e escreveu para o Japão, motivando a vinda da Grande Família. Antes da chegada de Shoji Sakate, já estava morando aqui no Brasil uma de suas irmãs mais velhas, Miyako Sakate, casada com Yoshio Nikuma, que fixou residência em Santos, dando origem a um grande ramo da família no país.

Ao chegar ao Brasil, Soichi Sakate, pai de Shoji, estava com 43 anos e sua esposa, Shiu Sakate, com 46. Yukio Sakate, irmão mais velho de Shoji, estava então com 23 anos, acompanhado de sua esposa Kishino Sakate, com 19 anos. Isoo Sakate, o terceiro filho, um pouco mais novo que Shoji, estava com 12 anos e o quarto filho, Kan-ichi Sakate, tinha 10 anos. A filha solteira mais velha, Nobuko Sakate, estava com 20 anos, a menina Somiko Sakate, com 8 anos e a caçulinha Tomiko Sakate, com 5 anos. Também acompanhava o grupo a enfermeira Kimiko, com 19 anos, constando no livro de registro tratar-se de membro adotivo da família.

Shoji Sakate nasceu a 25 de fevereiro de 1914, e faleceu em Nova Andradina, MS, onde foi viveu os últimos 45 anos de sua vida. Foi um dos fundadores da cidade, juntamente com outros emigrantes japoneses que da cidade paulista de Andradina, resolveram abrir fazendas em terras sul-mato-grossenses da bacia do rio Ivinhema e margem direito do rio Paraná.

Quando estava com 20 anos de idade, em 1934, Shoji Sakate participou dos trabalhos pioneiros de fundação da Colônia Esperança, uma comunidade católica de imigrantes japoneses localizada no município de Arapongas, Norte do Paraná. A fundação dessa comunidade foi liderada por Koshiro Suzuki, missionário jesuíta que veio do Japão com a idéia de fundar no Brasil a primeira colônia de imigrantes japoneses católicos. É uma história arrojada motivada pela participação de imigrantes católicos japoneses que moravam no bairro de Gonzaga, em Promissão, SP. Após participar no referido projeto, Shoji retornou à região do noroeste paulista, e continuou seguindo a trilha da família rumo ao extremo dos trilhos da Estrada de Ferro Noroeste, no entorno das cidades de Andradina e Mirandópolis. Nessa região, a família trabalhou vários anos, abrindo novos sítios na esperança de recomeçar o plantio de cafezais, enfrentando as adversidades de um período de crise na produção regional desse produto agrícola.

Em 1945, ao final da guerra, mundo conhecia o poder devastador da primeira bomba atômica jogada sobre uma população civil, em 6 de agosto de 1945, por volta das 11 horas da manhã. Uma imensa nuvem de gases tóxicos, em forma de cogumelo, cobriu a cidade de Hiroshima, próximo à Província de Okayama, de onde 16 anos antes a Família Sakate havia emigrado para o Brasil. Três dias depois da destruição de Hiroshima, uma segunda bomba foi jogada sobre Nagasaki. De imediato morreram cerca de 140 mil pessoas em Hiroshima e 80 mil em Nagasaki.
Milhares de outras pessoas morreriam, posteriormente, vítimas de doenças causadas pela radiação nuclear. Em 15 de agosto do mesmo ano, o Japão é obrigado a uma rendição incondicional. Um tratado oficial de rendição foi assinado em 02 de setembro, dentro de um navio de guerra norte-americano que estava ancorado na baía de Tóquio. É o fim da II Guerra Mundial. Teria sido mesmo necessário jogar duas bombas atômicas sobre populações civis para acabar com o conflito? Alguns americanos argumentam que essas bombas foram necessárias para evitar a morte de um possível número maior de vítimas, caso os conflitos continuassem. A opinião geral dos japoneses tende a considerar que as bombas eram desnecessárias uma vez que as negociações para a rendição estavam avançadas.

Terminada a Segunda Grande Guerra Mundial, Shoji Sakate estava com 31 anos. Nessa época, ele já havia se casado, em primeiras núpcias, com uma moça filha de família conhecida de seu pai. Um casamento preparado estilo tradicional da antiga cultura do Japão. Mas este primeiro casamento não chegou a se consumar. Por esse motivo, em 1945, casou-se com Toyoko Sakate, cujo nome de solteira era Toyoko Akahoshi, natural de Lins, São Paulo, onde nasceu em 22 de julho de 1924. O pai de Toyoko se chamava Inokiti Akahoshi e sua mãe, Matse Akahoshi. Ambos nasceram no Japão. Francisco Akahoshi e Jandira Akahoshi são irmãos de Toyoko Sakate e residem atualmente (2012) em Andradina (SP). Toyoko que faleceu, em 17 de junho de 1979, está sepultada no Cemitério de Nova Andradina (MS) no mesmo jazigo onde estão sepultados Shoji Sakate, falecido em 2005, e seu filho Aparecido Tetsuo Sakate, falecido aos 20 de outubro de 1974, quando tinha 18 anos. Com exceção de Aparecido Sakate que faleceu solteiro, bem como da menina que faleceu ainda nova, o casal Shoji e Toyoko teve outros sete filhos: Toshi Sakate, Catarina Sizue Sakate, Emílio Shuji Sakate, Eduardo Kazuo Sakate, Nair Mitie Sakate, Maria Massae Sakate e Guiomar Tieko Sakate. Todos esses filhos e filhas do Shoji Sakate casaram-se e tiveram filhos e filhas, totalizando 23 netos e netas de Shoji e Toyoko. Esta em curso a formação de mais uma geração de bisnetos e trinetos do casal. A única filha de Shoji e Toyoko que não é avô é Maria Massae Sakate, minha esposa. Certamente, a história não termina aqui e muitos outros retornos se farão necessários para louvar a vida.

Campo Grande, MS, 09 de janeiro de 2016 – l
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