Irmã do Cavalão
Quando tinha meus seis anos de idade, no vilarejo do Brumado, município de Pitangui, MG, fui levado a uma fogueira na casa de uma Dona Lia Fidelis. Se iguarias houve, não me recorda tê-las alcançado. Já graças, sim.
Vi aquele povo entusiasmado, entre adultos e petizes mais crente com o fogo do que com o rogo - das rezas. E conversa animada.
Entre os circunstantes que abatumavam a sala de visitas e a cozinha, estava uma filha de Lia, uma freira, de hábito claro, que centralizava as atenções dos presentes. A minha, principalmente, quando revelou à atônita platéia que tinha a licença para visitar sua família somente a cada cinco anos. O lustro todo enclausurada era para orar e vigiar.
À saída, levado para casa com os irmãos pela mão de uma zelosa tia Rita, lembra-me que lhe perguntei, ardente de curiosidade, que idade eu teria quando a irmã voltasse ao Brumado. Acho que respondemos juntos e justos que teria 11, após alguns passos a mais na rua de terra batida, driblando o pedregulho. E passos apertados por conta do frio junino.
As ausências e eventuais retornos da irmã continuaram a freqüentar meu inconsciente, décadas após nosso primeiro - e derradeiro - encontro. Eu mantinha a impressão inicial de como era possível afastar-se da família por um período tão prolongado. Parecia-me uma vida desperdiçada, por mais que a prece pudesse e quisesse ser justificada.
E, por ironia do destino, sem ter abraçado uma ordem eclesiástica, fui eu, que ao longo de muitos lustros afastei-me do país, dos pais, dos quintais, e de tantas coisas tropicais, como se inconscientemente estivesse emulando a fórmula da irmã, que tanto me atarantara nos meus seis anos.
E, de repente, como se emulasse agora o Casmurro de Machado - cioso de reunir as duas pontas da existência - eis que, num encontro casual, na residência do Bispo Emérito, Dom Belvino, em Conceição do Pará, ainda no finzinho de 2015, deparo-me com aquele rosto octogenário que me soa à primeira (re)vista, familiar: era ela. Estava liberta, agora, do relógio quinquenal, podia comparecer todo domingo àquela missa das dez, celebrada por Sua Eminência.
Na brevidade de nosso aperto de mão, não ousei referir-me ao nosso encontro em torno da fogueira, de mais de meio século. Para certificar-me apenas, perguntei-lhe de onde era. Sou do Cavalão, respondeu-me. (Cavalão é uma povoação diminuta, remota, mas não tão distante nem perto de nada). E acrescentou ter vivido no Brumado, onde trabalhara na fábrica de tecidos por uns poucos anos, antes de abraçar a ordem religiosa.
Em meio ao algodão, andara infeliz, pois o chefe, impertinente, sempre a tirava dos teares, onde ganhava por produção, e a mandava para a fiação
onde o ordenado era fixo. Sofrera demais. Mais liberdade via à sombra da cruz, em adoração, essa irmã do Cavalão.