Meão de estatura

O gosto de Armindo era despachar com todo o seu secretariado, conjuntamente. Sentados em torno à sua ambassadorial escrivaninha tínhamos a chance de sorver seus judiciosos e preclaros ensinamentos. Éramos 3 atentos aprendizes daquela arte que Armindo cunhava la diplomatie.

Tínhamos instruções precisas para a composição dos textos, que nos albores dos anos oitenta, eram feitos à máquina, com espaço quatro, bem paragrafados e sem borrões. O espaço interlinear servia para Armindo fazer as suas correções e inserções, o que era invariável, na sua grafia sempre maiúscula. Essas correções, no entanto, tinham um limite: se a letra corretiva de Armindo começasse a aumentar, estava ali a luz vermelha para o texto se invalidar. Sua grafia e a professoral orgia andavam em par.

Mas havia as horas amenas, vencidas as nossas penas. E Armindo se soltava e se comprazia nas admoestações no sentido de que para escrevermos como um Shakespeare, precisávamos nos concentrarmos mais, ler os clássicos - que ele próprio enumerava, e entre os quai, modestamente, se incluía. E exibia as provas de sua magia: tinha obras publicadas, curiosamente em língua inglesa, talvez para melhor se ombrear com os seus ídolos clássicos. Ultimamente andava compondo uma obra de maior fôlego, um romance, que a cada dia adicionava um par de páginas graças à proficiência de sua zelosa Secretária Elgini.

Essa abertura animou pelo menos ao nosso colega mais veterano e mais próximo do Chefe, o Loncan, a cometer uma laudo-biografia de nosso mentor. Só não sei se o texto, por sinal gracioso, foi parar nas mãos ou nos ouvidos de Armindo, antes que se o confiasse à sábia Dona Maria Amarante, neta de ninguém menos do que o Marechal Cândido Mariano Rondon, e sua feliz consorte. O certo era que Armindo privilegiava mais o Loncan, menos quiçá por sua maior antiguidade, do que pela figura guapa, bem composta, e articulada, que ilustraria quaisquer funções sociais públicas ou privadas levadas a cabo na Residência diplomática.

E Loncan retribuía com todo o seu devotamento al Jefe. Mostrou-me, pressuroso, o esboço de uma biografia com que pretendia mimoseá-lo. Era uma bela peça, que Loncan, en petit comité, leu-me a sottovoce. Fazia menção às excelências do profissional, do ser humano, indo de seu requinte na composição de textos, de seus vastos conhecimentos na enologia, e até de suas proezas na caça ao javali.

Um trecho que guardei, e que espero ter a oportunidade de um dia empregar em proveito próprio, e quiçá, mirando-me no espelho - foi, quando se referia à figura física do Chefe, o apolíneo Loncan, mimoseá-lo, hiperbolicamente, como "...meão de estatura". Na realidade não havia como esticar aquela personalidade tão-emblemática em nossas vidas e lidas profissionais. Mas o meão, irmão, foi demais.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 30/06/2015
Reeditado em 27/07/2022
Código do texto: T5294774
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