Ser Otário é Arte ou Técnica?
Ser otário é arte ou técnica?
Trata-se de uma questão de ordem relacionada com as percepções que um otário tem do muito que o cerca.
Já tentei, por vezes, analisar a hipótese da otaricidade ter um caráter genético. Coisa do tipo filho de pais otários, seria necessariamente otário.
Bem, nunca pedi teste de paternidade ou de maternidade para os meus genitores, mas a minha observação na infância parecia indicar que os mesmos não atingiam os níveis como otário que hoje atinjo.
Me recorro na Simone de Bouvoir e parafraseio “não se nasce otário, torna-se otário”. Acho que isto espelharia que ser otário não seria uma sina genética. Seria então, um comportamento aprendido? Um traço cultural de alcance seletivo?
Sempre tentei explicar onde foi que “peguei o bonde”, visto que não acredito em herança genética para se tornar otário. Como já expliquei anteriormente, a prática quase diária em casa, me levava a “cair em golpes” no ambiente doméstico, com origem maternal, do tipo acreditar em cegonhas até os 12 anos de idade. Nos poucos “acessos de lucidez”, em que eu tentava argumentar que meus colegas conheciam em outras hipóteses, uma breve ameaça de espancamento me levava de volta a acreditar na tal ave. Na época eu debitava a um certo instinto de sobrevivência o tal acreditar.
Hoje avaliando, acho que quase devo ter alcançado uma espécie de recorde, que não figurou nas páginas do Guinness, pelo simples fato de ele não existir na época. Quando conto para meus alunos e alunas de Pós Graduação que “cegonhei” até os 12 anos, ainda passo por mentiroso, o que é igualmente constrangedor.
E por falar em situações onde o real parece confrontar o imaginário, me recordo de uma situação onde todos meus colegas achavam que eu era mentiroso e somente eu sabia a verdade, ou seja, eu era o otário da história.
Morava eu em uma cidade distante cerca de 100 km de sampa e trabalhava em uma grande empresa. Em duas oportunidades pedi licença para ir socorrer meu pai que havia quebrado o carro. Nas duas oportunidades me perguntaram: “mas seu pai não mora em São Paulo?”. Eu respondia afirmativamente e meu interlocutor ficava me olhando fixamente por alguns segundos, como se aguardasse “eu contar a verdade”.
O pior de tudo é que eu estava contando a verdade. Ia eu para São Paulo, com a caixa de ferramentas fazer o socorro. Não, não sou expert em mecânica. Na verdade sou até bem leigo. Mas sou “curioso praticante”! E como fundamentalmente um carro é uma reunião de sistemas lógicos, eu acabava, frequentemente, dando conta do recado.
Parece que era daqueles famosos “Plano Caracú”, onde eu não entrava com a cara!
Já que me citei meu referencial paterno, vou relatar outra situação que pode parecer surreal. Se aproximava o carnaval e eu já havia dito que não iria viajar. Aliás não curto muito viajar nestes feriados prolongados.
Meu pai me ligou e perguntou se na segunda feira de carnaval eu não iria para Sampa para ir buscar uma escada em uma loja. Eu tinha uma perua com bagageiro e este parecia ser o motivo do convite. Eu respondi afirmativamente, afinal não tinha o hábito de deixar ninguém na mão. Prudentemente perguntei se a loja iria abrir na segunda de carnaval. Ele me informou que já havia ligado para a loja e eles informaram que só fecharia na terça feira.
Na tal segunda feira, caí cedo na estrada e logo cheguei na casa de meu pai. Fomos, então para a loja. Acho desnecessário antecipar o que aconteceu. Estava fechadíssima. Voltei com meu pai em silêncio. Nem entrei e voltei logo para a estrada. Estranhamente (acho que nem tanto) eu ficava relinchando no carro durante a viagem. Ao chegar em casa minha esposa comentou que eu havia ido e voltado rápido. Respondi afirmativamente com um breve “sim”. E fui dormir. Somente na quarta feira de cinzas tive coragem de contar o que havia ocorrido. Senti que ela hesitava em acreditar, mas no fundo acho que nem eu acreditava.
Mas voltando à “vaca fria”, é arte ou técnica?
Acho que é mais arte, pois tem a ver com sensibilidade. Fosse técnica e eventualmente algum ser humano mais desavisado, poderia desejar se tornar um otário, através de técnicas mais simples. Talvez com a repetição de um mantra!
Mas como, até hoje, não encontrei um mortal, ainda que aloprado, que dissesse coisas do tipo “eu sempre sonhei em ser pobre, mas nunca consegui, não sei onde foi que eu errei”, certas coisas na vida não são um mero exercício de opção. Tal assim fosse e ninguém optaria por ser pobre, seque otário.
Fosse técnica e seguramente haveriam concursos onde se mensuraria a otaricidade das pessoas, com todo o rigor científico necessário, de forma a se hierarquizar os otários em castas ou categorias. Acho que os que mais se destacassem seriam promovidos a “hotários” (isso mesmo, com h), de maneira a dar um caráter mais “snob”, que os diferenciaria dos demais. Neste processo de hierarquização dos otários, acho que haveriam inclusive os “notários” que seria a contração de notório com otário.
Em não havendo este tipo de competição, dou por certo que ser otário não é uma questão de técnica, restando a opção de arte.
Eu costumo dizer que lavo cuidadosamente minha testa para ninguém ver escrito lá otário. Desde que tentaram me vender em Ouro Preto um pedaço da corda que enforcou o Tiradentes, fiquei cismado de que está escrito “otário” na testa. Ou pelo menos que eu tenha cara de!
Ao optar pela versão de arte, talvez esteja sendo auto indulgente, para não me sentir socialmente desqualificado.
Pratico por opção a docência universitária em graduação e pós, na área da Educação, tentando mudar a vida daqueles seres que chamo de apaixonantes. Sei que parece estranho, mas tenho uma galeria de alunos inesquecíveis, dos quais guardo pouco discretas lembranças. Sei que pode parecer lugar comum, mas acho que a educação pode mudar não só a vida das pessoas, mas toda uma comunidade e uma nação.
Faço com um tremendo gosto e tente ensinar aqueles jovens a pensar. Pensar pode ser algo até subversivo, mas vejo como algo libertador, no mais profundo sentido Freireano.
Financeiramente é algo vergonhoso. Me recordo que de certa feita meu pai me perguntou o quanto eu ganhava. Quando eu falei, ele riu como se eu estivesse contado uma mentira deslavada. E arrematou dizendo que ninguém trabalharia por aquele valor. Acho que foi um atestado de otaricidade! E eu dava aulas (acho que o verbo dar, é cabível) com o maior prazer! Era como se eu estivesse passando um recibo de otário.
Me recordo que quando comecei a fazer o Mestrado, eu precisava vir a São Paulo uma vez por semana. Costumava vir na véspera e dormir na casa da mãe da minha irmã, que usualmente era a mesma minha. Minha mãe sugeriu que eu poderia contribuir nas despesas em função desta frequência de vindas. Fui assertivo e perguntei o quanto seria o ideal. Ela sugeriu um valor que na época era aproximadamente o triplo do valor cobrado por um hotel 3 estrelas (Ibis). Evitei, claro, relinchar e público. Botei a mão na testa como se tentasse acertar um sorvete imaginário. Tudo isso enquanto eu saía.
Voltei para casa refletindo. Será que eu tenho cara de rico? (Acho que foi uma reação de busca de auto estima!) Olhei no retrovisor do carro e fiz a melhor cara de rico que eu sabia fazer. Ainda que não tenha qualquer experiência real na área.
Passei a acordar de madrugada para as aulas; “bate e volta”.
Ah, em tempo: eu sobrevivia com bolsa do CNPq!