Você já fez papel de otário?
. Você já fez papel de otário ?
Eu, pessoalmente, não conheço ninguém que se orgulharia de responder afirmativamente a este questionamento. Acho que no fundo, nenhum de nós gostaria de responder com um sim. Mas creio que ninguém, dentre as pessoas que conheço, ao menos, teria condições de responder negativamente.
O fator quantitativo pode ser outro aspecto que ninguém gostaria de entrar no mérito. “Uma vez basta!”, Acho que esta seria uma resposta típica de quem fez tal papel pela primeira vez. Mas creio que sempre que falamos isso, nunca terá sido a primeira vez.
Creio que desde que nascemos, estamos rodeados por informações, explicações, rodeios e outros eventos, que não condizem com a verdadeira razão de ocorrerem.
Eu, evidentemente, adoraria poder responder negativamente à pergunta acima, mas, infelizmente não posso.
Me recordo de um dia ter lido um artigo sobre o “Alcoólicos Anônimos”, onde dizia que o primeiro passo para a recuperação seria se reconhecer que se tem problema com a bebida. Ou seja, admitir o problema.
Dentro desta visão, resolvi começar pela admissão do problema. Sim, sou otário; otário praticante! É duro admitir isso, mas aprendi a ver como verdade.
Acho que a “otaricidade” mais antiga que tenho notícia, vem da minha infância, justamente quando, eu, como outras tantas crianças quis saber de onde vinha. Eu, claro, recebi a resposta clássica de que fui trazido por uma cegonha.
Hoje, avaliando a explicação, ela é bem sugestiva, afinal a criança vem em uma trouxa, que não é um excelente elogio, além de ser levada (a trouxa), no bico, que vem a ser uma outra forma de se referir a enganar alguém.
Eu, de pronto aceitei a explicação. Recordo-me que conversando com outros colegas no jardim da infância, descobri que eles contavam com explicações similares, o que fazia sentido como uma verdade universal para mim. Cheguei a conversar com as professoras de então e obtive a mesma resposta.
O tempo foi passando e vez por outra eu ouvia explicações um tanto divergentes. Claro, eu as refutava pois já tinha a minha explicação pronta. E, para mim, naquela época, era oriunda da “melhor consultoria científica”: minha mãe.
Sempre me considerei uma criança curiosa. Não sei exatamente o motivo, mas aquelas explicações “divergentes” pareciam ser cada vez mais comuns. Mais pessoas pareciam acreditar em uma explicação para a origem dos bebês, que não a hipótese ornitológica, ou seja, via cegonha.
Rotineiramente eu checava a informação original com a minha “consultoria científica” e sempre tinha a hipótese ornitológica confirmada. Eu jogava de lado minhas dúvidas e me orgulhava de ser um dos poucos que conhecia a verdadeira explicação. Acho que por auto elogio (talvez auto piedade) eu me sentia envaidecido de saber mais do que meus colegas, que vinham com uma tal de “hipótese sexual”, que eu ligava a algo sujo, de acordo com as informações que minha “consultoria” havia prestado.
Não sei exatamente por qual motivo, mas não mais discutia estes assuntos com minhas professoras, mas as conversas começavam a ficar restritas aos colegas de escola. Já por volta de 8 a 9 anos de idade, eu sofria certo descrédito ao defender e confirmar a hipótese ornitológica em detrimento da sexual. Naquela época, os defensores da hipótese ornitológica não eram tantos, mas havia ainda um grupo que compartilhava um “não se importar” com a resposta. Na verdade, já começava uma fase de riducularizações por parte de colegas que se julgavam mais bem informada do que eu.
Mas eu contava com minha “consultoria científica”, que vez por outra, me garantia a veracidade de suas informações. E eu me sentia seguro para enfrentar as adversidades e “comprovar para aqueles ignorantes” a verdade do que eu dizia.
Com o passar o tempo, os adeptos da hipótese sexual, pareciam crescer como uma praga de tiririca em um jardim.
Quanto mais eu era ridicularizado, mais eu consultava minha mãe, e saía sempre com a garantia de que a hipótese ornitológica era a correta.
Já por volta dos 12 anos de idade, eu e minha hipótese (oriunda do fator materno) era a “imensa minoria” na minha turma. Eu já tinha sérias dificuldades de lidar com a situação. Então resolvi tomar uma decisão radical: expor a segunda teoria (a sexual) para a minha “consultora”. Ela pareceu escandalizada com tal possibilidade (afinal sexo era uma coisa muito suja, segundo o que ela tinha me informado).
Eu me senti em uma encruzilhada. Eu tinha a “garantia” de que minha informação era verdadeira e não conseguia comprovar para meus colegas a veracidade da informação.
Busquei a racionalidade possível aos 12 anos de idade. Iria fazer a comprovação científica do fato.
Na época, eu cheguei a me questionar intimamente sobre o fato de nascerem tantas crianças na vizinhança e eu nunca ter verificado a presença de uma ave branca com uma trouxa no bico. Mas (senso de auto piedade), me contentei em aceitar que não ficava olhando para as nuvens o tempo todo.
Bolei, então, um plano “cientificamente estruturado: coletar imagem fotográfica da ave em seu ofício de “delivery” e comprovar o fato, esfregando na cara dos descrentes a foto.
Acho que por um golpe de sorte, não me apressei em divulgar o que estava planejando, de forma que minha integridade emocional foi preservada por mais tempo.
Nesta época tínhamos em casa uma cama dobrável, conhecida por “cama de vento”, que ficava guardada num quartinho no fundo da casa. Era o chamado quarto da bagunça, onde tudo se guardava lá.
Iria armar a cama no terraço que havia sobre o quarto e, munido de minha câmera fotográfica, documentar o evento. Talvez a decisão de ter escolhido uma cama, para observar o céu deitado, fosse um mecanismo de auto proteção, de forma a que eu não me cansasse ao procurar. No fundo, eu já tinha algumas dúvidas quanto a hipótese ornitológica.
Na época, eu não possuía conhecimentos fotográficos suficientes, e a minha câmera era uma do tipo instamatic , chamada de Kodak Rio 400 .
Ah eu tinha também no meu “arsenal” um binóculo que havia ganhado cerca de dois anos antes. Parecia-me o instrumento ideal para antever a aproximação furtiva da ave, dando um tempo de preparar a máquina e realizar o flagrante.
Obviamente me parecia tudo adequado, ainda que eu contasse com um equipamento fotográfico inadequado para o registro.
Mas a persistência era uma característica juvenil minha, e eu passava tardes e tardes, deitado na cama, preparando a comprovação da hipótese ornitológica. Na época eu nunca havia ouvido falar em Premio Nobel, senão eu já imaginaria ser agraciado com um.
Minha mãe parecia julgar estranhas as aminhas atitudes vespertinas e frequentemente me inqueria sobre o motivo. Eu buscava guardar segredo, de forma a poder encher ela de orgulho de meu mérito científico que pretendia alcançar. Não me recordo qual desculpa eu dava, mas imagino que no entender dela deveria ser alguma espécie de vagabundagem infantil. Acho que foi nesta época que ganhei uma bicicleta para ver ser eu saia um pouco na rua.
Claro, passei a sair com a bicicleta, acompanhado da câmera e do binóculo, evidentemente. Achava que iria aumentar o meu raio de pesquisa, e desta forma alcançar rapidamente o meu objetivo.
Desnecessário dizer que não consegui flagrar a tal ave em uma entrega. Na verdade, o que era frustrante, nem cheguei a flagrar uma cegonha sequer. Parecia que aquelas aves eram discretas em demasia.
Claro, eu não podia suspeitar das palavras da minha “consultora científica”, afinal, no meu entender, era a mais pura expressão da verdade. Seria algo como discordar das palavras do Papa , como eu tinha aprendido recentemente nas aulas de Catecismo.
Comecei então, um processo de “comer pelas bordas” e checar de formas outras o conteúdo do que havia sido passado para mim no quesito reprodutivo. Recordo-me que inqueri ela sobre como era feito o processo de encomenda. A explicação, que na época me pareceu plausível, era a de que as mães interessadas deveriam escrever uma carta para a cegonha (isto mesmo, no singular!!!) e ela atendida aos pedidos.
Ato contínuo, perguntei sobre o motivo de algumas mulheres não terem filhos. E me foi explicado que o endereço da tal cegonha era muito bem guardado e que as mulheres que não tinham filhos, não tinham este endereço. Portanto não tinham como “fazer a encomenda”.
Não cheguei a relacionar que coincidentemente as mulheres que recebiam suas “encomendas”, pouco tempo antes estavam mais roliças. Bem, não cheguei, portanto, a questionar esta coincidência, mas imagino que se o fizesse, provavelmente receberia como explicação o fato de elas ficarem ansiosas, esperando a encomenda e descontarem em excesso de comida. Afinal, tudo tinha explicação naqueles tempos. E que explicações!!!
Acho que meu projeto científico durou por aproximadamente um ano. Acho que isto dá para avaliar o tamanho da minha persistência!
Me recordo que chegou o final do ano com a minha câmera fotográfica ainda “virgem” e eu aproveitei minhas férias para refletir sobre o que havia ocorrido durante o ano que passou.
Felizmente eu estava mudando de escola e não precisaria mais prestar contas de minhas afirmações. Acho que foi um daqueles momentos em que o destino te protege.
Mas em minhas resoluções de ano novo, decidi não mais falar na hipótese ornitológica. Isto não significava que eu havia derrubado a hipótese. Eu ainda acreditava na minha consultoria científica. Acho que no fundo achava que poderia ser “premiado com uma surra” se fosse questionar.
Já ia me esquecendo de citar: na minha infância se achava que surras tinham função pedagógica no desenvolvimento da criança. Se tal fosse verdadeiro, eu seria um gênio, pois erra surra um dia sim, outro também. Diante desta rotina, a prudência recomendava não questionar jamais a tal consultoria.
Começava um novo ano escolar em uma nova escola. Novos colegas que pareciam já estar envolvidos com a tal hipótese sexual. A prudência recomendava não questionar e nem revelar minhas “crenças”. Dediquei-me mais a ouvir, e o que eles diziam, parecia estranhamente coerente. Era um conhecimento de domínio público!
Pela primeira vez me perguntei: será que sou o único que tem a resposta certa? Eu me senti inseguro em defender esta teoria. Eu tinha dentro de mim o sentimento de que não teria como derrubar a hipótese. Mas não me sentia preparado para renegar as crenças anteriores. Recordo-me que nesta época escrevia meu primeiro “trabalho científico”. Eu escrevia que haviam duas formas de reprodução: a ornitológica e a sexual. Mas, claro, a ornitológica era “correta”. Me lembro ainda que nas suposições de então, eu achava que a alternativa sexual eu julgava a das mulheres que não tinham conseguido o endereço da tal cegonha, e, portanto, “pegavam um atalho”.
Que confraria fechada deveria ser esta das mães que guardavam a sete chaves o endereço da cegonha!!!
Hoje, avaliando minha trajetória de descobertas imagino que eu devo ter chegado perto do recorde de tempo de crença em cegonhas entregadoras de crianças. Pelo menos, da minha turma, fui o último a continuar acreditando.
Claro, não vejo motivo de orgulho para tal. No fundo, vejo como uma manha no meu currículo. Talvez um indicativo do que ainda vira acontecer.