749-ARMANDO MUSCHIONI- Uma biografia

TIO ARMANDO - Notas biográficas de Armando Muschioni

Era um cavalheiro, um gentleman, como se dizia em sua época. Naturalmente, e a qualquer momento. Sem esnobismo, sem querer aparecer, o que destacava ainda mais sua maneira de ser e chamava mais a atenção de quantos o viam e o conheciam.

Alto, magro e desempenado. A tez clara, cabelos loiros sempre bem penteados, olhos claros sob sobrancelhas bem marcadas, nariz e boca bem feitos e proporcionais ao rosto severo. Elegante, caminhava com ombros erguidos, não balançava os braços. O tipo era o de um nórdico e foi tomando, no Rio, por alemão, abordado por turista na língua de germânica, da qual não entendia patavina.

Calmo e tranquilo, não tinha pressa e sabia tratar as pessoas com respeito e cuidado. Fazia parte da sua elegância interna. Todas as pessoas que o conheciam tinham dele a melhor impressão.

O bom humor constante era outra característica e sem chegar ao exagero de um contador de piadas, tinha sempre uma observação engraçada, um dito gracioso para as situações bizarras.

Armando Muschioni nasceu em São Sebastião do Paraíso em 30 de outubro de 1916. A família morava na Chácara Lagoinha, distante do centro da cidade uma légua (seis quilômetros, aproximadamente). Quando atingiu a idade de frequentar a escola primária, foi morar na casa de Tio Gordo, que acolhia os sobrinhos, filhos da irmã Beatriz.

Terminado o curso primário, foi aprender oficio de alfaiate, na alfaiataria de Francisco Denúbila, a mais importante da cidade. Aos dezoito anos, (em 1934) foi sorteado para servir o exército. Era a prática usual de então, e o serviço militar, obrigatório por dois anos, era prestado em unidades do exército, situadas nas cidades mais importantes do país.

Foi para Três Corações, onde havia um regimento de cavalaria do exército. No final do primeiro ano no regimento, foi escoiceado por um cavalo no tornozelo direito e, sem condições de prosseguir nos exercícios de treinamento, foi-lhe dada a baixa do exército. A cicatriz do ferimento o acompanhou por toda a vida, uma marca em forma de estrela de muitas pontas, mas não lhe ficou nenhuma sequela, nenhum dano no andar.

Retornando a Paraíso, voltou à profissão de alfaiate e a residir na casa de Tio Gordo. Trabalhador e de bom gosto, logo se tornou um dos melhores alfaiates de Denúbila. Trazia trabalho para ser feito em casa, à noite. Seus colegas de trabalho eram, entre outros, Walter Paschoini, Alfredo Sandoval, Felix Penha e Dinovaldo Soares.

Fumava demais. Talvez pelas companhias, talvez pela elegância do ato. A moda de fumar era divulgada principalmente pelo cinema, onde Humphrey Bogart era o mestre de fumar com elegância. Apreciava os cigarros marca Fulgor, Clássicos, Liberty e Adelphi. Vinham em caixas de papelão e eram chamados de “ovaes”. Na década de 40 foram substituídos pelas carteiras de papel e as marcas mudaram: Continental, Neuza, Saratoga, Hollywood, Lincoln, Liberty (que então fornecia opção: ovaes ou comuns). Todas as marcas apresentavam uma versão mais cara, “com ponteira”, que tinha uma das pontas protegidas por papel pardo: não era filtro, apenas uma tirinha de papel melhor para o cigarro não colar nos lábios.

Este vício iria lhe causar problemas de saúde aos quarenta anos, quando, residente no Rio, teve um ataque de falta de ar e tosse.

“Tive nessa noite, ele me confessou, uma tosse forte, escarrei sangue senti uma asfixia. Achei que ia morrer. Sozinho no meio de tanta aflição ouvi uma voz que me disse: Se não parar de fumar, vai morrer entro de um ano. Naquele momento, jurei que pararia de fumar. Nunca mais coloquei um cigarro na boca. Foi duro, mas as palavras ficaram no meu ouvido durante muito tempo, e foi por elas que parei de fumar.”

Lia, numa época que a leitura era coisa de doutor. Assinou a revista “Seleções do Readers Digest” em 1942, quando foi lançada, e a coleção de 12 exemplares foi por mim encadernada (1953) e doada à Biblioteca da Igreja Protestante (1954). Exemplares de “O Critério de James Balmes, “Nossa Vida Sexual” de Frtiz Kahn, “As Dores do Mundo” de Schopenhauer”, “O Homem que não Era Ninguém” e “O Homem de Marrocos”, de Edgar Wallace, eram livros que guardava no seu guarda roupa. Dos jornais que circulavam na cidade (O Liberal, O Cruzeiro do Sul) cortava as seções de poesia, de notas sociais e com elas encheu um baú de madeira, como se fossem um tesouro.

Gostava de cinema, de viajar e de reunir com os amigos. Era um homem interessante, curioso, animado para festas. Dançarino elegante. Gostava de música, e seu cantor predileto era Francisco Alves. Sua presença animava qualquer reunião.

Tornou-se sócio do Clube Paraisense e logo foi nomeado para diretor de festas, cuja função principal era enfeitar o salão para os bailes que se realizavam durante o ano, nas datas mais importantes: Passagem do ano ou Réveillon; Carnaval; Dia do Trabalho, 1º. De maio; bailes juninos; Baile da Independência; Baile do Aniversário do Clube (outubro); Baile da República (15 de novembro) e outros, às vezes aleatórios, aproveitando a presença de bandas importantes que iam a Ribeirão Preto e eram contratadas por um preço camarada. Foi assim com uma Banda de Tambores do Haiti, com os Caballeros de España.

Para incentivar moços e moços, criou a Noite dos Coqueiros: todas as terças-feiras à noite, ao som de discos de 78 RPM, havia sessão de aprendizado de dança, ministrada por ele, por Elizeu Rossi e outros amigos que gostavam de dançar. Rumbas, valsas, beguines, sambas, foxes, e boleros... Ah, os boleros! Inesquecíveis. Quando a orquestra tocava um, ninguém ficava sentado.

Para os garotões da vizinhança, como eu e os colegas e amigos da mesma idade — 14, 15, 16 anos — que não podiam frequentar o clube devido a pouca idade, ele ensinava a dançar numa sala que havia ao lado da nossa casa, ao som de uma pequena Vitrola portátil.

Não se casou. Não por falta de candidatas. As moças gostavam dele e ele, delas. Mas não se afeiçoou a nenhuma em especial. Uma houve que quase o conquistou: Iris Caravieri, esbelta, elegante e alta, linda cabeleira a escorrer pelas costas. Faziam um par elegante, principalmente no salão, ao dançarem. Mas o romance não vingou.

Participou do Grupo Teatral Gene Nossa, dirigido por Nicola Carlomagno. Foi contra regra das diversas peças que o Grupo encenou.

Por volta de 1945, teve de moderar suas atividades sociais. A mãe Beatriz, que morava na Chácara, começou a padecer de uma ferida na fronte, perto do olho esquerdo. Era um câncer. Veio a residir na casa de Tio Gordo, onde já moravam Carolina, Armando, Maria e sua família (Pedro, Antonio e Arthur), e Tio Gordo, naturalmente. Não havia cirurgia para a ferida, que evoluiu até formar uma chaga imensa do lado direito do rosto, e até o final de seus dias, em 1950.

Tio Armando, que sabia aplica injeções, era quem cuidava dela. Dormia no mesmo quartinho, com a mãe, para aplicar doses de morfina a qualquer hora que ela acordasse, gemendo de dor. A alfaiataria ficava a dois quarteirões de nossa casa, e muitas vezes ao dia Tio Armando ia ver como estava passando a mãe.

Em maio de 1949, Tio Gordo Sofreu derrame cerebral e ficou parcialmente paralítico. Seguiu-se um ano de trabalhos e preocupações para todos. Tio Armando entregava-se cada vez mais aos cuidados da mãe, enquanto Maria e Carolina cuidavam de Tio Gordo. Ambos vieram a falecer em meados de 1950. Tio Gordo em junho e vovó Beatriz em julho, com 15 dias de diferença.

Os sobreviventes estavam exaustos. Carolina foi passar uns meses na Chácara do irmão Alpineu e Armando tirou umas férias e foi para o Rio de Janeiro, onde moravam alguns amigos. As férias eram apenas pretexto, pois na então capital federal encontrou trabalho e lá ficou residindo até 1978.

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Profissional competente e de bom gosto, Armando encontrou no Rio de Janeiro trabalho em boas alfaiatarias no centro da cidade e depois, em Copacabana. Não demorou muito, passou a ser vitrinista em lojas de Copacabana. Mais tarde, voltou a ser alfaiate na importante e famosa Casa José Silva, no centro do Rio.

Era um homem curioso que amava passear, conhecer pessoas e lugares. Gostava de visitar museus, ir a teatros e cinemas, visitar exposições de arte. Nos fins de semana, não ficava na pensão, saia para um passeio, ir à praia, ou a um teatro, um cinema ou museu. Em pouco tempo, conhecia os pontos interessantes da Capital Federal de então. Comunicativo, fez amizades com o pessoal do teatro e trabalhou como “extra” ou figurante em óperas do Teatro Municipal.

Era chamado para apadrinhar filhos dos colegas, e com isso, adquiriu muito compadres, gente boa, suburbana, que prezavam a amizade de Armando. Gente modesta, que moravam em instantes subúrbios, como Campo Grande, Nilópolis ou Jacarepaguá.

Nunca se esqueceu da família em São Sebastião do Paraíso. No segundo semestre de cada ano, vinha passar as férias na cidade natal. Para nós eram dias de muita conversa, ele gostava de contar das coisas que via e de sua vida no Rio. Carolina e Maria lhe perguntavam insistentemente “quando é que ele ia voltar pra Paraíso”, o que ele desconversava com desculpas sempre elegantes.

Convidava (ou melhor, seduzia) os sobrinhos para irem para o Rio. Os pais não gostavam, mas alguns concordaram e foram. Primeiro foi Orlando, filho de tio Alpineu e tia Elvira. Esteve uns três meses com o Tio Armando, depois se empregou como caminhoneiro e saiu para viajar.

Em seguida foi a minha vez: em 1954 consegui transferência no Banco Crédito Real e mudei-me para o Rio, com o pretexto de estudar odontologia, e fui morar com Tio Armando. Primeiro, numa pensão na Rua Benjamin Constant, 84, e em seguida na pensão de Dona Tereza, na Rua Santa Tereza, 147, no Bairro de Santa Tereza. Morei com Tio Armando apenas 10 meses, e foi um período em que vasculhamos o Rio. De Copacabana a Belfort Roxo, de Saco de São Francisco (Niterói) a Floresta da Tijuca e Jacarepaguá, visitamos quase todos os pontos interessantes. Praias. Teatros. Museus, Cinemas. Tudo o que podia ver, Tio Armando me mostrou. Deixei sua companhia quando fui para Tapes, Rio Grande do Sul, trabalhar no Banco do Brasil.

Em Seguida, foi a vez de Darcy, filho de Tio Alpineu. Também morou com Tio Armando até ser admitido no BB e ir residir no norte de Minas.

Foi meu padrinho de casamento em 1958 e parte da nossa (Eu e Enny) lua de mel foi passada no Rio de Janeiro: uma semana de passeios com Tio Armando, que, de novo, fez questão de nos acompanhar nos pontos mais interessantes da cidade maravilhosa.

Tio Armando passava suas férias anuais (geralmente em outubro) em Paraíso, e eu o visitei, na década de 1960, no Rio, diversas vezes, com minha família. (1)

Também nessa década residi por algum tempo em sua casa (como locatário), à Rua Dr. Placidino Brigagão, 1748.

Em 1970, quando fiz um curso no Centro de Desenvolvimento Pessoal do Banco do Brasil, no Rio, convivi com tio Armando por mais de mês: encontrávamos todas as noites e nos fins de semana, e a cada encontro íamos a um lugar diferente: restaurantes, teatros, cinemas e shows de cantores. Ele mantinha sempre o entusiasmo pela vida, alegre, jovial. Parecia ter tomado o licor da eterna juventude. Apenas a calvície se acentuava, mas lhe dava um charme diferente, aumentava sua elegância.

Trabalhava então na Casa José Silva, uma das melhores casas de roupas masculinas e alfaiataria do Rio de Janeiro. Por sua indicação, adquiri um terno elegante, última moda, com o qual fiz sucesso na inauguração do prédio próprio da Agência do Banco do Brasil em Jales (SP).

Em 1976 Tio Armando, aposentado, voltou a residir em São Sebastião do Paraíso. Com sessenta anos mantinha seu espírito curioso, que o levou a frequentar cursos de arranjos florais, de esoterismo e até de fabricação de cerveja. Ajudou durante alguns anos, graciosamente, dona Carolina Mumic, fazendo arranjos florais na Flora Santa Izabel.

Quando o irmão Aristeu ficou inválido, cuidou com se fora o próprio pai: vinte e quatro horas ficava com ele e por conta do esforço, teve um stress que o levou a um taque de nervos.

Mantinha vida ativa e cuidava da saúde. Tinha pólipos na bexiga, e a cada seis meses, se submetia a cauterizações. O que não impediu do aparecimento de um câncer na bexiga, que se manifestou quando ele estava com 70 anos, em 1986.

Não ficou sozinho nos últimos anos de sua vida. A irmã Nena, viúva, foi morar com ele, e Beatriz, sobrinha, o visitava diariamente.

Previdente e muito carinhoso com todos, não tendo herdeiros diretos, doou sua casa residencial para Beatriz, com usufruto para a irmã Nena.

A doença foi cruel com Tio Armando: sofreu durante seis anos. Visitei-o diversas vezes (eu morava então em Belo Horizonte), e a última vez que o vi, estava já sob o efeito de sedativos, e não se dava conta da quantidade de amigos, parentes e conhecidos que o visitavam.

Tio Armando faleceu em 15 de março de 1992, aos 76 anos. Seus restos mortais repousam na sepultura adquirida por ele, ainda em vida. no Cemitério Municipal de São Sebastião do Paraíso.

(1) Ver conto “No Cabaré dos Bandidos”

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 27 de setembro de 2012

Conto # 748 da Série 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 08/04/2015
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