Deus se mantém calado
Quando eu tinha uns 11 anos, eu tinha uma melhor amiga que sempre gostei muito, nos brincávamos todos os dias, seus cabelos dourados, seus olhos enrustidos como topázios mais azuis que o próprio oceano junto a um sorriso encantador. Ela tinha brigas constantes em casa, os pais sempre discutiam e acabava com sua mãe apanhando do pai alcoolizado, um dia quem apanhou foi ela, que ficou horrivelmente machucada e foi para a escola com uma blusa de frio para esconder os hematomas. Eu fiquei chocado quando vi aquilo e acompanhei ela até sua casa, já as 18:30.
Na casa dela estavam os dois brigando, o pai, um nobre empresário agora bêbado, frágil e com raiva. Tentei parar a mão dele quando estava prestes a desferir um tapa no rosto da própria filha, ele, com a mão em fúria quebrou a garrafa de vinho na minha cabeça. Quando finalmente acordei, já eram quase 22 horas, elas me olhando do sofá e eu deitado em suas pernas, fui atrás do pai ainda tonto, queria saber se estava tudo bem. Estava dentro do quarto chorando, quando finalmente acendi a luz, ele estava com um revólver que retirou do cofre, apontado diretamente para sua orelha, ele chorava, tremia e balbuciava lamúrias de não ter sido um bom pai e marido, depois de meia hora atrás dele eu convenci de largar a arma mostrando o quanto aquelas adoráveis moças sentiam por ele e o queriam junto dele, de nós. Um mês se passou e ela estava sem o sorriso no rosto, estava triste, com enormes olheiras nos lindos olhos meio apagados, a pele rosada era branco monótono, a vida escapava de seu corpo. Ela foi diagnosticada com câncer e meu mundo desabou.
Dia após dia eu visitava ela no hospital onde estava sendo tratada, seus cabelos dourados como ouro se reduziram a nada, os lindos oceanos em seus olhos já haviam desaparecido, sua boca vermelha como o carmesim das rosas não sorria mais, ela já havia aceitado a morte. Enquanto eu dedicava as notas escolares, tentava manter a bolsa e ainda trazia mais tempo para Deus no meu coração, ele se tornou meu pilar por dias, meses! Mas parece, que Deus se manteve calado, um silencio profundo de um mundo abandonado. Tínhamos um baile para ir nesse dia, eu levei o vestido até ela no hospital e logo pedi para sua mãe que logo aceitou sem hesitar, porém, havia algo errado.
Ela estava triste, depois que disse o nome de seu marido que ela desabou e cedeu ao choro incontrolável. Ele havia suicidado, pulou do 11º andar do prédio que trabalhava. Mesmo assim levei minha amada para o baile, onde era encarada por olhares frios e falsos, eu era o único que estava ao seu lado, ela andava e dançava com dificuldade, eu a sustentava durante todo esse tempo, tudo por um prazer egoísta, ver aquele sorriso pela última vez. Após uma música lenta, veio a nossa, What is a Dream de 30 Seconds to Mars, nossa música favorita, que implorei para que tocassem. Dançamos cheio de lágrimas nos olhos, emocionados e REALMENTE felizes dessa vez, ela me deixou aquela noite com um beijo de despedida, mas não sabia o quanto uma despedida poderia se tornar um adeus.
No outro dia, ela já não estava mais em seu quarto, tudo que ela deixou foi seu diário, uma foto e um colar, todos presentes que guardo com unhas e dentes. Quando li o diário, a maioria falava das brigas e discussões, sempre falando algo sobre mim e os nossos dias juntos, no último capítulo do diário estava um pequeno fragmento que desintegrou meu coração mais profundo que uma estacada na alma:
“Eu sei que estou morrendo, a cada minuto nessa porcaria de quarto onde os olhares frios dos médicos me furam como agulhas a cada segundo, a morte segura minha mão junto a outra que mantém meu sorriso mentiroso, eu já estou morta a este momento, transitando sem rumo em ambos mundos, se isso é o céu ou o inferno apenas sei que é lindo. Mas finalmente em um dia exaltante de exames e medicamentos ele chega. Além de sempre ficar ao meu lado, me sinto viva, sua mão aconchega a minha e ainda diz com aquela voz tonta que encontra calor em vosso toque, ele é o único que afirma junto aos olhos negros que estou viva! E com minha voz fraquejante digo: Como você gosta de alguém tão morto como eu? E logo sem hesitar sua resposta me enche os pulmões de esperança. Eu que te pergunto, como alguém tão morto como você, me faz sentir tão vivo? Sabe a resposta? É porque eu te amo. Mais uma vez nós nos beijamos e ele se deita ao meu lado, pelo menos posso morrer sem ser esquecida por alguém e ainda mais minha segunda vida como ele, o cheiro de seus cabelos não lavados dá me vontade de puxar-lhes as orelhas, mas o calor do seu abraço me esquenta a alma, finalmente estamos sintonizados e sinto que posso morrer sem arrependimentos.”
Não pude ver seu rosto, o caixão era descido à terra e meus sentimentos despedaçados aos milhares, todos sofriam em silencio, mas todos sabem o quanto é difícil perder uma amada, sua alma gêmea, o pequeno cisto de alegria infinita que trazia. Não haviam ouvidos que não ouvissem, olhos que não chorassem, eu abrangi meus pulmões ao máximo do berro estridente da dor descomunal, não aguentava aquela realidade, perder minha doce beldade.
Todo ano, no dia 28 de Agosto eu visito o túmulo dela em Belo Horizonte e toda vez deixo tulipas, suas flores favoritas e choro como uma criança, olhando para a pequena caixinha preta que guardo no bolso, onde estão os anéis que eu daria para ela no baile.