O ato de Morato
O Professor Morato era, destacadamente, a sumidade mais fervilhante do corpo docente do GENEP, o meu ginásio dos anos sessenta. Mais do que ensinar História do Brasil, o Professor parecia encarná-la naquele microcosmo encastoado nas serranias da Velha Serrana.
Cabral, Joaquim José da Silva Xavier, os Andradas, o Regente Feijó, ficavam confinados aos compêndios impressos, enquanto o lente Morato, com sua voz cavernosa e retumbante, duas vezes prefeito do burgo, passeava pela História de seu amado torrão natal, incorporando-se em seus fatos e fados.
Uma de suas predileções recorrentes era falar dos nhambiquaras, os temíveis autóctones que haviam povoado a região antes de se iniciar o ciclo do ouro dos fins do século XVII. Se exibisse àquela incrédula platéia estudantil uma cicatriz qualquer, dizendo que fora duma flechada, iria ser aplaudido de pé. Mas, modesto, nada mostrava, senão a profundidade de seus conhecimentos e a vastidão de sua cabeleira.
Quando falava do incêndio da matriz antiga, ocorrido em 1914, chegava a se emocionar, travestindo-se de um Sansão ao carregar aquelas imagens sacras e pedras enormes que voltariam a servir para assentar a nova e imponente matriz da Senhora do Pilar.
Durante o breve período de seu magistério que experimentei - ele logo seria chamado a dirigir a imprensa oficial do Estado, em Belo Horizonte -
não me lembra ter visto uma única prova sua que tivesse retornado às mãos dos examinados, todos, todos, com louvor aprovados.
Assim, quando meu tio Antônio, semi-letrado e experimentador contumaz de todo um repertório tentativo de ofícios manuais, de tecelão a faiscador de ouro, abordou-me um dia junto a cerca de tela do quintal que separava a nossa casa da de vovó, para se apresentar como candidato ao lugar do Professor Morato, eu reagi, com perplexidade:
- Mas tio, praquilo é preciso de preparo, de diploma sobre o assunto...
Ao que ele respondeu:
- Uê, mais num é pra contá história lá pros minino? Isso eu sei tanto ou mais do que ele.