CONCEIÇÃO DA BARRA
Esta cidade – embora nela, diretamente, não tenha residido – representa para mim muita coisa. Conheci Conceição da Barra nos ido de 1956, a passeio, com meus pais, pois éramos chegantes de São Domingos do Norte e fomos residir em Povoado de Santana, distante da sede aproximadamente 5 km.
Em Santana fiquei de 1955 até 1964, mês de junho, quando fui trabalhar em Braço do Rio Preto, distante da sede aproximadamente 35 km. Pois bem. Retornemos a Santana.
Morávamos às margens da rodovia antiga que ligava Conceição da Barra a São Mateus, numa casa próxima ao Rio Santana, logo na subidinha, casa de varanda arqueada, pintada de amarelo ocre, com telhas coloniais, sem grande acabamento, já que se tratava de uma casa construída sem acompanhamento de arquitetos ou de engenheiros, porém era muito aconchegante, e posso dizer que naquela região, se não fosse a melhor seria uma das melhores.
Tínhamos como vizinhos nossos a Dona Santinha seus pais e seus filhos, os quais moravam quase em frente a nossa casa. Hoje aquele lugar é denominado “Riacho do Navio”.
A dona Santinha, que era uma excelente pessoa, via que em nosso sítio não tínhamos fruteiras, - as quais fomos plantando aos poucos e como é de praxe e natural, demoram muito para dar os primeiros frutos - Uma, pela falta de técnica no plantio e outra, talvez a maior, a falta de adubação e irrigação. Ela nos disponibilizou um pé de manga. Imagina a cena: ela tinha inúmeras mangueiras e nós nenhuma. Ela chamou o papai e disse-lhe: doravante o senhor e seus filhos podem tirar todos os frutos desta mangueira. Ela é de vocês.
Começava ai uma vida bem agitada. Tínhamos um pé de manga no terreno da vizinha. Como tínhamos autorização dela, sempre estávamos lá usufruindo o nosso “latifúndio”.
Meu pai cuidava do acero e da limpeza do local, de forma que pudéssemos sempre colher as frutas e, sem o perigo de uma cobra ou outro animal peçonhento nos atingir. Feito a roçada bem rente ao chão, muitas varinhas ficaram pontiagudas, o que sem querer, sem a intenção do papai, tornou-se maior perigo que as peçonhas.
Um belo dia, quando estávamos brincando junto ao pé de manga, derrubando algumas para nosso deleite, o Mirim, meu irmão mais novo, se desprendeu do galho e caiu, exatamente em cima de uma ponta daquelas. Que tristeza. A ponta vazou no peito do pé.
Como o papai, além de grande trabalhador, detinha poderes além do normal, acudiu o meu irmão Mirim. Com um canivete de cortar fumo, retirou toda a impureza que havia ficado dentro da perfuração, retirou todas as cascas da ponta que ficaram e, com aquela porção mágica que trazia sempre com ele, que tratava-se do “sarro do cachimbo”, fez o verdadeiro milagre, não inflamou, não purgou e cicatrizou muito rapidamente.
As terras que pertenciam a nosso pai eram terras mistas, tinham parte arenosa, outras alagadiças e uma de terra de primeiríssima qualidade, que a denominávamos de “ilha”.
Na parte arenosa, o papai sempre plantava mandioca, amendoim e abacaxi. Na parte alagadiça, plantávamos arroz, e as margens dela, muita taioba, que fazia parte da nossa alimentação, degustada com polenta. Na “ilha” fizemos plantações de milho, feijão, hortaliças e outras que foram, também, a base de nossa alimentação e ainda eram vendidas, as que sobravam, que serviam para o papai comprar outras coisas que não produzíamos.
Nossa jornada não era das mais fáceis. Afinal, saíamos bem cedinho, quando o orvalho ainda estava caindo, antes do raiar-do-sol, papai nos colocava em fila indiana, ele puxando a fila, íamos molhando a roupa quando adentrávamos à lavoura. Chegando lá, ele demarcava, como de costume, um eito, que pela ótica e experiência dele, daria para cada um de nós terminar até o final da tarde.
Iniciávamos o trabalho, já pensando em chegar ao final do limite traçado anteriormente, com toda a energia que dispúnhamos, cujas enxadas, quando era o caso, raspavam o chão, retirando a cobertura de matos e ao mesmo tempo nós, como se galináceos fôssemos, ciscávamos com os pés, os matos retirados, de forma que dele se desprendesse da terra, e, consequentemente o mato morresse. Se não fizéssemos o serviço direito, o nosso mestre, o papai, vinha atrás refazendo e resmungando.
Por volta de 9 a 9:30 horas, mamãe, ou outra pessoa, gritavam ou avisavam que o almoço já estava pronto. Para lá íamos, esfomeados, porém, o papai nos fazia levar um pouco de lenha ou até produtos. Não andávamos “batendo carroceria”, como dizemos hoje. Pegávamos a “boia” e retornávamos ao labor. O descanso era o trajeto. Enquanto andávamos para a casa ou para a roça fazíamos o quilo.
Quando a mamãe morreu, em 1961, assumiu a cozinha o Alarino, que fazia uma comida de boa qualidade. Se hoje estivesse vivo, seria um verdadeiro Chef. O Alarino resolveu buscar novos horizontes, tendo saído com o Benedito de Pedro Aurora para uma viagem de reconhecimento que contarei num capítulo à parte. Sai o Alarino e assumiu a cozinha o meu irmão Jovelino, que como o Alarino deu conta do recado.
O Jovelino, que tinha uma dor de cabeça constante, tinha a proteção do papai e ficava em casa. Lógico que para não ficar parado, que não era o feitio dos malacarne´s, teve que assumir a cozinha, tendo cozinhado por um bom tempo até que um dia eu reclamei que a comida estava salgada. Foi a gota d’água. Daí em diante a qualidade da comida mudou sensivelmente. Se já não comíamos grande variedade com extravagância de sabores, fazia comida sem sal de tudo.
Querendo fazer uma experiência comigo, o papai me mandou para a cozinha, cuja função foi de vida efêmera, durou apenas um dia. Me lembro que ao preparar o arroz, tive a sensação de estar fazendo uma polenta. Mexia o arroz o tempo todo e, ao terminar o cozimento o arroz não ficou nivelado como os que vemos hoje. Quando o Jovelino chegou, querendo me criticar, pois estava perdendo a função de cozinheiro, foi logo dizendo: “este cozinheiro é dos bons. Antes de terminar o cozimento já comeu grande parte dele” Eu sequer havia experimentado o sabor daquele meu primeiro “banquete”. Também foi a gota d´água. Não cozinhei mais.
Retornamos ao status quo ante. Eu voltei para a roça que era o meu lugar e o Jovelino reassumiu a cozinha. Hoje ele cozinha alguma coisa e eu nada sei de cozinha.
Nas derrubadas e nas roçadas – que eram trabalhos diferentes – era muito prazeroso. Você via o trabalho, via as clareiras e sentia que tinha sido muito importante. Hoje, se falar em derrubada, certamente que se está ameaçado de prisão. Mas era assim mesmo que sentíamos.
Quando éramos meninos, papai não concordava com jogo de futebol. E nós, aos domingos, gostávamos de participar de um racha ou mesmo uma “pelada”. Como éramos péssimo de bola, os colegas nos aceitávamos mais ou menos assim: um fica num time e o outro no outro time, de forma que “equilibrasse” os pernas-de-pau.
Além de estratégica, pois, quando o papai descobria que estávamos jogando, ele se dirigia ao campinho e, sincronizadamente saíamos correndo. Na verdade, não havia desfalque algum para os times, pois, nós não acrescentávamos nada. Éramos verdadeiros “bolas-murchas”
Mas conto a história apenas e tão somente para justificar o que lhes direi agora. Num dos jogos fui escalado para o gol, pois, aquele que não consegue jogar nada, tinha-se a péssima impressão de que serviria para o gol. Para lá fui.
Num dos ataques desesperados, igual uma tropa de animais desenfreados, vieram para cima de mim, e, eu, pretendendo fazer a grande defesa, me lancei na bola, cujo adversário a chutou e minha munheca trincou.
No dia seguinte, de mão inchada, meu pai nos acordou e disse que deveríamos ir para a roça, munidos de foices, devidamente amoladas, para fazermos uma coivara de uma área que ele derrubaria na semana seguinte.
Todos amolaram suas foices, e eu, não conseguia segurar a foice com uma mão, e manusear o rebolo com a outra. Meu pai observava e dizia, vamos que estamos atrasados. Eu sofrendo dores incontroláveis, dizia que não suportava as dores. Ele, ironicamente disse-me, vai procurar o Pelé que ele te trata e te dá comida. Ele dizia, pois, não gostava de futebol. E a referência ao Pelé era feita, pois, pelos noticiários sabíamos que o melhor cantor era o Roberto Carlos, o melhor jogador, o Pelé, e assim por diante.
Amolei minha foice, com toda a dor do mundo, ninguém me ajudou – papai não permitiria – e me dirigi para o roçado. Imaginem a cena. Quando dei a primeira foiçada, deu um choque na minha mão que quase desmaiei. Tentei usar a foice debaixo do braço para não ser considerado um “mole”, contudo não deu. Era muita dor.
Fui para casa e, uma bondosa senhora, me recomendou e fez um emplastro de guanandi, madeira que era comum nos brejos, a qual soltava um leite amarelo e viscoso, que envolto num pano, enrolava-se com uma tala, que não sei se tinha poderes anestésicos ou anti-inflamatório, contudo resolveu o meu problema.
Depois desta experiência nunca mais me atrevi a jogar, mesmo porque minha mão nunca mais ficou tão católica quanto dantes. Sempre, em mudanças de tempos, ela aparece dolorida me recordando da minha infância.
Não poderia deixar de lembrar outro evento, outro acidente ocorrido conosco. Em cima da nossa casa, na frente dela, sobre a varanda, existia uma laje, onde o Jovelino gostava de brincar de carrinhos de madeira, feitos por nós mesmo. Um dia, ele tinha subido na laje pelas laterais e estava puxando o seu carrinho de costas, até acabar a extensão da laje. Ele caiu, num lugar que denominávamos “engana-bode”, que consistia numa entrada em forma de caracol, onde só passavam pessoas. Animais não conseguiam fazer a curva com o corpo!
Ao cair, com muita sorte, não se estrepou nas estacas que compunham o engana-bode. Porém, caiu em pé e deslocou ambos os pés. Nesta hora, foi o maior alvoroço e o papai, com sua experiência e segurança disse: “agora tem que acabar de matar, não vai servir mais para nada!” É claro que foi uma expressão impensada e sem querer sacrificar o próprio filho. Ele ficou injuriado com a desobediência do Jovelino e demonstrou a sua insatisfação, assim como fez comigo no momento que desloquei a munheca!
Como lembrei-me dos carrinhos que fazíamos, vou tentar reproduzir um dos mais sofisticados: Tratava-se de um carrinho feito de madeira, com cabine e tudo. Ele tinha duas rodas na frente, com jogo, a tração dele era nós mesmos, e, na maioria das vezes, ele possuía uma carreta com cambão e tudo, de forma que carregássemos o carrinho com uma planta brejeira que denominávamos de aninga. As torrinhas eram cortadas facilmente e colocávamos na carreta e cavalo e brincávamos muito. Hoje, na era digital, as crianças já nascem plugadas e/ou chipadas. Não querem mais criar, preferem encontrar o trabalho virtual feito.
Nossa “indústria” começou bem cedo. Fazíamos os nossos primeiros carrinhos com carretéis de linhas. A maioria das donas de casa costuravam para si e para seus filhos, umas até para “fora” e sobrava muitos carretéis de linha, vazios. Era muito sugestivo, qualquer pedaço de madeira, no formato tábuas, servia para fazer-se um excelente carrinho. Fazia-se dois buracos na tábua de forma que encaixasse os carretéis e já estaria pronto. Era só alegria!
Nas horas que conseguíamos escapar das vistas do papai, íamos para uma matinha que circundava a nossa residência, e ali, num terreno impróprio para tal, tentávamos jogar uma bola de gude. Tínhamos enterradas em lata de óleo inúmeras bolinhas, em lugares diferentes, de forma que se, por algum capricho o papai nos visse jogando ele tomaria todas as bolas e serviriam para jogar com os estilingues.
Não temos muito que contar do nosso tempo de criança, eis que ele, como nas demais famílias que nos avizinhavam, eram mistos de trabalho e obediência. O nosso lazer se confundia com o trabalho. E olha que não me arrependo de nada!
Este texto fará parte de um novo e breve livro a ser lançado.
Avelino Malacarne- 22/02/2015.