Cândido sapateiro

Dos sapateiros da cidade Candico era o que mais alto chegara, após fixar residência ali em frente ao sobranceiro sobrado da Maria Tangará, convertido havia muito em educandário. Acima do Candico, só o próprio teto, o largo do São Francisco, o Asilo de Velhos, a Santa Casa e o Campo Santo, já quase beirando o céu. E em volta de tudo aquilo um casario miúdo, sem a expressão de tanto casarão que não usara nem ousara subir as encostas montanhosas da Velha Serrana.

E foi num meio de tarde ensolarada que chegamos ao Candico arfando de calor e sede, acompanhando mamãe que aproveitara um dia de suas raras folgas na fábrica de tecidos, para fazer umas compras na cidade. Agora era a vez de alguma sandália, ou de repregar um salto. Falando baixinho e mascando sempre - aparentemente a própria dentadura - Candico continuou sentado em seu tamborete, com as mãos sempre ocupadas.

A sapataria se colocava num único cômodo, pequeno, pouco ventilado, um porãozinho ainda menos iluminado. A valença era o passeio contíguo, que oferecia luz de graça, e a graça de ver o alvoroço da molecada entrando e saindo do grupo escolar.

Não me parece que o sapateiro tenha sido bem sucedido naquela inquirição de mamãe, pois tivesse ela resultado em uma encomenda, ali teríamos voltado pra apanhá-la.

Eu é que lá voltei, um ano depois, quiçá, e pra ser vizinho quase diário do Candico por ao menos um par de anos, quando nos mudamos do Brumado povoado pra cidade, e fui estudar no Tangará.

Vendo-me de uniforme, camisa branca, calça curta azul marinho, Candico não se lembrou de mim, concentrado que andava nas suas solas e vaquetas. Mas pouco me amolei: queria era catar um pedacinho de couro jogado fora que me servisse para fazer a escora de um bodoque. Já tinha ganho um par de tiras de gomas, bonitas, amarronzadas, de câmara-de-ar de pneu de bicicleta e o gancho, certinho da silva estava que ia encontrá-lo numa goiabeira ou jaboticabeira do quintal - vizinho, não faria mal.

Ignorei o Candico com suas mastigadelas intermináveis e me pus a perscrutar o lixo de seu trabalho, que se acumulava à sua porta. O que tinha na cabeça, passarinho nenhum gostaria de ver concretizado.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 05/02/2015
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