Uma de Minhas Muitas Vidas
Uma dor aguda no peito. A sensação de um líquido quente a escorrer em direção à garganta. Fora a última sensação que tivera. O céu, de um azul escuro profundo, repleto de estrelas, fora a última cena que vira antes de morrer.
Lembro-me de ter pensado "Por que estão todos parados? Onde os que sorriam para mim?". E a escuridão se fizera.
Vagara por estradas sombrias, sentindo frio, fome. Ao tentar sorver o líquido de uma poça d'água, em meio à estrada, por um breve momento, pudera ver o meu reflexo. Cabelo em desalinho, rosto desfigurado pela dor e pelo medo. Em nada lembrara a moça sorridente, alegre, feliz que fora em vida.
Crescera entre eles. Povo nômade, sem raízes.
Meus pais haviam morrido quando criança. Fora criada por uma mulher simples, de bom coração que me ensinara a arte de curar, de ajudar aos que sofriam. Lidava com ervas e unguentos. Aprendera a lidar com a Magia Branca.
De suas mãos, luzes de um verde claríssimo enchiam o ambiente de paz. Quando era procurada por seu povo ou por alguém da cidade onde costumávamos acampar, atendia-os prontamente, sempre a serviço do bem. Ela era toda Luz! Possuía o dom de curar doenças tidas - na época - como incuráveis. E isso, passara, com o tempo, para mim.
Ensinara-me a Magia e me fizera prometer que a usaria somente para bons propósitos. Jamais aceitara pagamento pelo bem que fazia. Ensinara-me a rejeitar a visita de senhoras daquela sociedade que nos procuravam, com seus corações repletos de ódio e cobiça, a fim de causar infelicidade ao próximo. Assim, crescera com a tarefa de ajudar, curar sem nada esperar em troca.
Aprendera com minha mãe a bendizer a terra, o sol, a lua. Aprendera a conversar com "aqueles que não eram vistos por mais ninguém".
Graças ao respeito que todos possuíam por minha mãe - A Dama de Branco - fora tratada com carinho por todos daquele lugar. Adorava dançar nas festas de meu povo. Em volta da fogueira, cabelos negros e longos, corpo esguio, rodopiava ao redor dos presentes, sem lhes notar os sentimentos negativos que contra mim, eram emitidos.
Por ter sido bela, pelos homens era cobiçada. Pelas mulheres, invejada.
Minha mãe, por diversas vezes, alertara-me quanto ao perigo que corria estando entre eles. Mas não havia para onde ir. Para onde seguir. Preferira ficar ao seu lado. Seu amor me confortava...me protegia.
A Dama de Branco adoecera e, sem que nada pudesse fazer, ela partira em minhas mãos. Imensa tristeza tomara conta do meu corpo...de minh'alma. Tudo que tivera partira daquele mundo. Estava total e fatalmente sozinha. Deixara-me entre centenas de pessoas que sorriam para mim, mas que, por mim, não sentiam carinho.
Passara a fazer parte da família daquele povo, ainda que sentisse repulsa por seus hábitos grotescos. Por onde passávamos, deixávamos um rastro de alegria. Éramos um povo alegre, forte, bonito, fogoso. Muitos, por dinheiro, seriam capazes de tudo.
Ganhávamos a vida dessa forma. Música, dança, jogos. Eles sabiam tirar proveito dos habitantes das cidades por onde passávamos. A dança fora a forma como contribuía para ajudar meu povo - ainda que não o quisesse - a ganhar a vida. Vez por outra, era procurada por meus "dons" de cura, premonição. Mas, como não cobrava por isso, não me prestavam a atenção.
Ivana costumava ser minha melhor amiga. Corpo franzino, cabelos claros e olhos azuis, onde, às vezes, enxergava lampejos de um desequilíbrio emocional. Costumava ter calafrios quando a via dessa forma. Algo a me sussurrar aos ouvidos: "Este será o seu fim".
Por amá-la como a uma irmã, sentira-me na obrigação de criar poções (em verdade, não passavam de ervas que tinham o poder de acalmá-la e crer naquilo que desejava crer) que teriam por finalidade "segurar" seu grande amor: Igor, um cigano forte, de beleza refinado para o padrão de nosso povo. Dono de um olhar penetrante, onde, olhos mais atentos, poderiam enxergar a luxúria, a malícia, a morte. Ivana seria capaz de fazer tudo por ele. Tudo...sem pensar nas consequências. Pobre Ivana.
Nunca fora incomodada por homens do meu povo ou qualquer outro, enquanto minha mãe estivera entre nós. Acreditavam-na ao meu lado após sua partida. Exceto Igor, espírito incrédulo, aventureiro, sempre à cata de prazer carnal. Passara a assediar-me com maior frequência, a cada dia. Por isso, fora obrigada a isolar-me em um casebre no alto de uma montanha, longe do acampamento. Não o queria por perto. Cheirava mal, apesar de estar sempre perfumado. Agora sei porque tivera tanto medo dele.
Em uma noite amena, brisa suave, onde todos de meu povo comemoravam a chegada da primavera com muito vinho e música, como de costume, sentira meu coração pulsar com maior intensidade, comprimindo-se dentro de meu peito. Procurara alívio em meu cantinho preferido junto à natureza. Uma rocha lisa e imensa, por onde as águas de uma pequena cachoeira deslizava suavemente. As saudades de minha mãe, naquele momento, foram-me quase que insuportáveis. Parecera-me estar ali, presente.
Chorava em silêncio por me sentir tão sozinho em meio a tantas pessoas. Sentira-me fora de meu mundo. Aquele, por certo, não seria o meu Povo. Eram bárbaros, vingativos. Eu não poderia fazer parte daquele mundo!
Pensativa, quase em transe, não notara a presença sorrateira de Igor que chegara com um rosa entre os dentes. Aquela visão era-me perturbadora! Soubera de suas intenções antes mesmo dele pronunciar qualquer palavra. Vira-o sorrir um sorriso malicioso, quase grotesco. Havia lascívia naquele olhar. Havia mais do que desejo. Havia um impulso animal, bestial dentro dele.
Em total desespero tentara gritar, sem ser ouvida. O povo em festa, bêbado, jamais me socorreria.
Pedira-lhe para pensar em Ivana que o amava tanto. Implorara para que não me tocasse...não me machucasse. Mas tudo fora em vão. Encolhida sobre a pedra que tanto bem me fizera tantas vezes, fora brutalmente possuída por aquele monstro. Fora o primeiro e o último homem a me tocar.
Igor levara com ele minha pureza e me deixara a vergonha, a tristeza, as dores física e emocional. Jamais diria nada à Ivana. Por certo, não aguentaria tamanho golpe.
Ao voltar ao meu lar, tivera de passar por entre eles, aquele povo embriagado, enlouquecido ainda mais pela volúpia causada pelo fogo, pela dança, pelas mulheres quase despidas, entorpecidas pela bebida e pelo desejo desenfreado. Tentara passar sem que me percebessem. Com as roupas rasgadas pela brutalidade sofrida, sangrando em algumas partes do corpo, esquivava-me daqueles que encontrara pelo caminho, até que ouvira a voz terrível de Igor a gritar por meu nome. Virara-me de frente para aquele povo, como quem já conhecia meu destino. Naquele momento, pensara em minha mãe e lhe pedira forças, pois pressentira que o Mal estaria ao meu lado.
Vira aquelas mulheres a quem ajudara por diversas vezes rirem de mim, com um ar de superioridade. Homens que outrora me cobiçavam, cuspiam em minhas vestes, naquele momento. Ao fundo, Ivana e Igor esperavam por mim, com um olhar tão enigmático que até os dias atuais não conseguira desvendar seu sentido.
Sem nada compreender, vira minha melhor amiga, com uma adaga em uma de suas mãos, pular contra mim, como uma leoa sobre uma gazela. Incentivada por Igor - sua louca paixão - cravara o punhal em minha garganta antes que pudesse perguntar-lhe o porquê.
Morrera, aos poucos, diante de meu povo, com um único pensamento em minha mente: "Onde está minha mãe? Preciso de ti, mãe...apareça. Salva-me dessa tragédia. Salva-me da solidão de morrer entre inimigos".
A Dama de Branco viera em meu socorro. Suas mãos alvas tocaram-me com tanta delicadeza que fizeram-me esquecer de tudo.
Partira daquela vida sem nada ter feito de mal ao meu próximo. O passado guardaria as respostas.
16/07/2014 - 17h24m
09/07/2011 - 20:57 - primeira edição