ERNESTO PAULELLI
(99 anos)
Violonista e Advogado
* (1914)
+ São Paulo, SP (26/02/2014)
O cantor e compositor brasileiro Adoniran Barbosa passou anos espalhando por ai que o "Arnesto o convidou para um samba no Brás, mas quando ele chegou lá, não encontrou ninguém e ficou com uma baita de uma réiva". Essa é a história narrada no clássico "Samba do Arnesto" de 1953.
Pois é, acontece que o caso não foi bem assim, e o pobre do Arnesto ainda levou a fama por dar um bolo no compositor. Pedimos licença para recontar essa história, mesmo que a versão de Adoniran seja, de longe, muito mais emocionante.
O Arnesto Nos Convidou
Pra começo de conversa, o Arnesto na verdade se chama Ernesto Paulelli. Mas não adiantou repetir "meu nome é Ernesto!", já que Adoniran Barbosa preferia chamá-lo por um nome que "desse samba".
Aliás, Ernesto Paulelli não convidou ninguém para samba nenhum: ele e Adoniran Barbosa se conheceram em 1938, quando se encontraram na Rádio Record, onde Ernesto Paulelli ia se apresentar ao lado da cantora Nhá Zefa. Trocaram cartões e ele disse: "Arnesto Paulelli". Eu o corrigi e disse que o nome certo eraErnesto. Mas ele insistiu: "Pois, a partir de hoje, você será Arnesto. E tem mais: vou lhe fazer um samba! Aduvida?".
Arnesto, ou melhor, Ernesto Paulelli, não duvidou, mas só foi ouvir o samba em sua homenagem em 1955, 17 anos após o encontro entre ele e o maior nome do samba paulistano.
Adoniran Barbosa e Arnesto, ele não liga mais que troquem seu nome, foram amigos até a morte do sambista em 1982. Como lembrança, o advogado aposentado da Moóca guarda a amizade e uma partitura do "Samba do Arnesto"com a dedicatória do compositor.
Ele Mora no Brás
Na verdade, ele morava na Mooca, bairro da zona leste paulistana, há mais de cinquenta anos. Mas até os anos 1940, época em que conheceu Adoniran Barbosa, Ernesto Paulelli morava mesmo no Brás. O fato é: Se não tinha samba no Brás, nem na Mooca, já que o Arnesto não tinha convidado ninguém.
Ernesto Paulelli disse que certa ocasião foi conversar com o Adoniran Barbosa e perguntar que história era aquela de dar um bolo nele. Com aquela voz rouca ele me respondeu: "Arnesto, se não tem bolo não tem samba!".
Da Outra Vez, Nóis Não Vai Mais
Esse fardo Ernesto Paulelli teve que carregar a vida toda. Até o fim de sua vida ele ainda levava a fama de "furão". O compositor se justificou, uma vez, quando encontrou Arnesto, depois que a música já fazia sucesso "É que sem mancada não tem samba!". Ernesto Paulelli ganhou de presente as partituras originais de quando seu amigo compôs o samba que o "rebatizou".
Para a nossa sorte - e do Arnesto também - o nome realmente deu um samba. Em todo caso, da próxima vez, pra evitar a "réiva" é melhor "ponhar" um recado na porta "assinado em cruz, porque não sei escrever".
Arnesto Fala do Saudoso Adoniran Barbosa
O telefone toca na casa da Rua Tagi, no bairro paulistano da Mooca, e quem atende passa a ligação, depois de saber do que se trata, para Ernesto Paulelli. Aos 95 anos, ele começa a conversar em tom festivo: "Você quer fazer uma entrevistinha? É um grande júbilo falar, atender à imprensa". Quase ninguém sabe que Ernesto Paulelli é, na realidade, "Arnesto", nome pelo qual ficou conhecido depois que Adoniran Barbosa lhe dedicou uma de suas principais criações, o "Samba do Arnesto".
O Mais Cruzeiro soube da história a partir de uma sugestão de pauta postada no site do jornal por Claudinei Paulelli, sobrinho de Ernesto Paulelli. Ele que mora em Campinas, SP, procurava na internet informações para um trabalho que desenvolve e leu na versão on line do jornal, reportagem sobre o show "Seu Rosa e Seu Barbosa", que o produtor Carlos Madia realizou no Campolim no mês de abril, para homenagear o centenário de nascimento de Adoniran Barbosa e de Noel Rosa.
Foi o que bastou para Claudinei avisar o jornal de que o tio poderia ser entrevistado. "Ele está muito bem e pode contar histórias interessantes", mencionou depois. O internauta tinha mais do que razão. Seu Ernesto Paulelli é uma figura. Carismático e dono de uma memória prodigiosa, relatou detalhes do encontro que resultou numa das mais importantes composições da música popular brasileira da década de 50.
Ernesto Paulelli e Adoniran Barbosa, porém, se conheceram no final dos anos 30. Para ser preciso, ele lembra, em 1938. Então vendedor de uma fábrica de cera, aRecorde (com "e" no final mesmo), Ernesto Paulelli era, também, músico. Frequentava rodas de samba, acompanhava artistas em apresentações nas rádios. Numa dessas ocasiões, na Rádio Record, foi apresentado ao compositor. Adoniran Barbosa, conforme Ernesto Paulelli, era, àquela altura, "relativamente famoso", mas sempre se mostrou despachado, brincalhão e irreverente.
Assim que o avistou, pediu um cigarro. Ernesto Paulelli não fumava. "Então, me dá seu cartão". Adoniran Barbosa recebeu o cartão do recém-conhecido, e disse que não lhe daria o seu porque simplesmente não tinha. Nunca teve, na verdade. Ao ler o nome impresso, comentou: "Então você é o Arnesto?". Ernesto Paulelli o corrigiu: " Não, sou Ernesto. Com E". Adoniran Barbosa emendou: "Pois, a partir de hoje, você será Arnesto. E tem mais: vou lhe fazer um samba! Aduvida?"."Fiquei lisonjeado com o gesto. Ganhei, ali, naquele dia, um irmão", contou Ernesto Paulelli.
O tempo passou, os dois não se encontraram mais, até que, em 1955, 17 anos depois, Ernesto Paulelli e a mulher ouviram, na Rádio Bandeirantes, o locutor anunciar:
" - Vamos ouvir, agora, com Os Demônios da Garoa, o Samba do Arnesto."
Ernesto Paulelli gritou para a esposa:
"- Alice! Essa peteca é minha! Esse samba é meu!"
"- Alice! Essa peteca é minha! Esse samba é meu!"
Dona Alice não entendeu a princípio, mas ouviu com o marido a canção que tocava. Ao final, os dois, abraçados, choraram de emoção pela homenagem. Ernesto Paulelli disse que nunca "aduvidou" de que Adoniran Barbosa cumpriria a promessa.
O "Samba do Arnesto" foi um dos grandes sucessos daquela fase, mas também deu a seu Ernesto Paulelli a fama de "furão". Para quem não se lembra, a música fala de um sujeito que convida os amigos para uma festa e não aparece. São muitas as versões que tentam explicar como surgiu a composição. Adoniran Barbosa, em depoimento a um programa da TV Cultura, explicou que Arnesto teria sido, na verdade, irmão de Nicola Caporrino, seu parceiro que assinava "Alocin". Conhecido por inventar histórias, Adoniran Barbosa não foi exatamente fiel aos fatos nesse caso. Foi o próprio Nicola Caporrino quem esclareceu o mal entendido, segundo o pesquisador Celso de Campos Júnior, autor da biografia do autor de"Trem das Onze".
Consta que, em meados dos anos 50, Adoniran Barbosa costumava passar os feriados ou fins de semana com amigos no Guarujá. Nicola Caporrino o acompanhava nestas viagens, até o momento em que, por apertos financeiros, deixou de ir. Numa tarde de sexta-feira, Adoniran Barbosa foi até a casa do amigo, acompanhado de seu cachorro Peteleco. Nicola Caporrino pediu à mulher que dissesse que não estava, e escondeu-se no quarto. O cachorrinho, porém, localizou o fujão que acabou viajando. Já na praia, depois de umas e outras, Adoniran Barbosa sugeriu ao amigo que não mentisse, apenas "deixasse um recado na porta". Nicola Caporrino devolveu: "Isso dá samba!". E deu mesmo. Adoniran Barbosa lembrou-se da promessa feita há muito tempo ao amigo que conheceu na Rádio Record e compôs a canção.
Em 1957, novamente nos corredores da Rádio Record, Ernesto Paulelli se preparava para acompanhar um artista quando viu Adoniran Barbosa. "Te fiz o samba. Você gostou?", perguntou Adoniran Barbosa. Ernesto Paulelli, claro, falou da alegria de ter sido homenageado, mas disse que ficou "numa situação embaraçosa" por conta da mancada de que a música falava. Adoniran Barbosa soltou, então, outra de suas pérolas: "Arnesto, se não tivesse mancada, não saía samba!".
Os dois se tornaram, então, compadres, no dizer de Adoniran Barbosa. Para selar de vez a amizade, Adoniran Barbosa entregou a seu Ernesto Paulelli a partitura com a música, que autografou. Ele guardou a relíquia até fim da vida.
Ernesto Paulelli só voltaria a saber do amigo, quando ele passava por problemas de saúde. "Estava muito doente e internado no Hospital São Luís, na região da Brigadeiro Luiz Antonio. Fiquei sabendo, depois, que ele morreu. Uma grande e irreparável perda".
No centenário de nascimento de Adoniran Barbosa, Ernesto Paulelli, que estava muito perto de completar 100 anos, foi o centro das atenções. Procurado por jornais, contou inúmeras vezes como foi o seu encontro com o compositor. Na"Virada Cultural", embarcou no "Trem das Onze" junto com outros artistas, entre os quais o grupo Trovadores Urbanos, que cantaram temas de Adoniran Barbosa.
Morte
Ernesto Paulelli sofreu uma fratura de fêmur na sexta-feira, 21/02/2014, foi internado e operado. Na quarta-feira, 26/02/2014, após ter recebido alta da UTI, teve uma parada cardiorrespiratória e não resistiu. O velório foi realizado após às 19:30 hs. do dia 26/02/2014, no Cemitério do Araçá, em São Paulo.
No Facebook, familiares de Ernesto Paulelli lamentaram a morte: "É com grande pesar que comunico a perda do nosso querido Arnesto do Samba. Nosso grande mestre, pai, avô e bisavô. Descanse em paz, vô.", publicou Neto Paulelli.