A realidade dentro das clínicas de recuperação ( Experiência própria)

Devido à grande repercussão do livro "O holocausto Brasileiro", enxerguei a oportunidade de escrever acerca de uma experiência que tive no passado. Como todo aspirante a escritor sabe, procuramos incessantemente por lacunas na vasta miríade de assuntos que existem por aí, para que a autenticidade seja parte de nossa obras. E haveria, por acaso, algo mais autêntico que a própria experiência?! Quantas vezes ouvi leitores de "O holocausto brasileiro" referirem-se às barbaridades que são descritas no livro como “ horrores daquela época”. O que poucos sabem, é que coisas tão execráveis ou piores, ainda acontecem sob o véu da sociedade. Sob tal obscuro manto, onde a morte espreita a integridade humana, vi a luz, que fosca e apagada, tardou a fulgir pra mim novamente; afinal, foram longos 9 meses. Pois vamos então direto ao assunto, evitando prolixismos desnecessários.

Há 10 anos, na tenra idade dos 14, morei na rua por um período muito curto, 14 dias para ser mais preciso. Na época, usuário de maconha, deparei-me com minha mãe na rua, e ela me chamou para entrar no carro. Perambulávamos pelas ruas sem um aparente intento. Ela estacionou o carro e disse de um jeito muito suspeito que precisava ir ao banheiro. Considerei o ato desconfiável, mas aguardei a sua volta, que na verdade não aconteceu. Fui saudado por um homenzarrão corpulento, usando uma indumentária negra: parecia um segurança ou coisa assim. Este disse em tom estentório: “ Rafael, saia já do carro”. Inocente e sem entender o que ocorria, desci do carro e o tal homem segurou o meu braço e levou-me em direção a uma ambulância que estava parada a poucos metros. Inquiri o que estava acontecendo, e ele me respondeu que me levaria à São João Del Rey para fazer alguns exames e que me traria de volta em poucas horas. Concordei, até porque o vigor com o qual ele segurava o meu braço era um claro "não" peremptório à qualquer recusa. Abaixei as calças e tomei uma injeção de prometazina, haloperidol e diazepam, e “apaguei”. Aquele momento seria apenas o primeiro de muitos opróbrios.

Acordei horas depois, ainda extremamente sonolento, e fui saudado por um baixinho careca, judeu, que depois revelar-se-ia dono da clínica. Indaguei, mais babando do que falando: “ Onde estou?”, mas a resposta foi um bom tapa na cara seguido de uma frase bem cordial: “ Aqui é 'sim, senhor, e não, senhor'”. Tudo isso porque eu estava sendo arrastado, as pontas dos pés roçando o chão de pedra, incapaz de sustentar o peso do meu próprio corpo em virtude da letargia provocada pela medicação. Fui acomodado num lugar chamado “compulsório”. É lá que os internos novatos passavam de dois a cinco meses, engaiolados feito animais. O compulsório era simplesmente um quarto pequeno, apinhado de beliches, e com uma porta que quase nunca abria, exceto quando algum outro infeliz tinha o desprazer de conhecê-lo. Nunca soube qual era o critério que estabelecia quantos meses ficava-se lá dentro, mas posso dizer que passei 5 meses, raramente vendo o sol ou qualquer outra coisa. Após ser colocado pela primeira vez no leito sobre o qual eu passaria os cinco meses infernais, ainda dormi mais dois dias, sem acordar pra nada, pois o efeito do medicamento estava obstinado a deixar minhas veias. Não é preciso dizer que a cama fez papel de vaso sanitário. Toda aquela ordália estava só por começar, pois as famosas “travadas” de haloperidol seriam um coadjuvante sinistro, juntamente com um louco desvairado que acabara de chegar, que defecava no copo comunitário (o copo era de plástico, e sabe-se que o plástico retêm odores). Chamo-os de coadjuvante, porque os protagonistas daquele filme de terror estavam do lado de fora do compulsório, lecionando e governando aquele presídio privado: os próprios conselheiros. Encarcerado, dopado, e num ambiente fedendo a merda, vi, depois de um bom tempo, o sol brilhar esplendoroso sobre minha cabeça, e contemplei a visão de uma bela montanha, arborizada e muito convidativa para uma fuga. O que eu não esperava é que o terreno fosse pantanoso, e que ficaria atolado até o pescoço naquela vã tentativa de por um fim no ecúleo. Com o cabelo grande, no meio das costas, fui içado do lamaçal, sem dó nem piedade, com a raiz dolorida e latejante do couro cabeludo, além das nádegas doendo devido à outra injeção, foram um constante lembrete de que fugir não era uma opção. O compulsório, repugnante e fétido, logo tornar-se-ia um paraíso, pois os que tentassem empreender uma fuga eram largados na solitária: um lugar lúgubre, com um buraco para passar a comida, sempre escuro. Permaneci lá por pouco tempo. Sorte a minha, pois o novo interno, o tal que defecava no copo e bebia, passaria longos 7 meses trancafiado como um animal violento naquele buraco esquecido pelos deuses.

Os cinco meses se passaram, e fui para o lugar chamado “comunidade”. Era um cômodo maior, no qual os internos veteranos dormiam, banhavam-se, escovavam dentes, etc...Lá havia um certo tipo de “alvedrio”. Embora não ficássemos presos todo o tempo, passávamos as horas livres na laborterapia, ou melhor, na escravoterapia. Essa era a palavra empregada para designar 8 horas de trabalho braçal que fazíamos de domingo a domingo. Talvez fosse melhor ter permanecido no compulsório, pois lá eu tinha menos contato com os conselheiros. Havia três conselheiros: o mandachuva, um japonês pequeno, cabeçudo e de cara preta ( ele sofria de algum tipo de doença de pele), ex-presidiário e com a cara cheia de verrugas; o segundo, ex-usuário de droga, treinava jiu-jitsu ( em mim e em outros mais fracos, e só os deuses sabem como minhas articulações macilentas puderam aguentar); e o terceiro, um velho chamado seu Osvaldinho, incumbido de aplicar as injeções de ” sossega leão”, caso alguém resolvesse não cooperar.

As principais ferramentas de tortura psicológica eram os doze passos, a bíblia e as próprias reuniões. Não que fossem algo ruim, mas o intento com o qual eram usados, isto é, de oprimir e tiranizar, transformavam as ferramentas de auxílio no açoite do algoz. Nada podia ser feito, pois os lambe-botas- internos querendo ganhar reputação com os “ conselheiros”- eram a maioria, fato que anulava a possibilidade de rebelião. Como os próprios monitores diziam, “ dentro da clínica negão chora e grita mamãe”. Houve apenas um caso de um interno, que destemido como era ( tão destemido que fora baleado pelos policias de São Paulo, e tinha um braço inútil), tentou quebrar as regras e foi surrado e dado comprimidos de neozine, de dormonid, entre outros que não me lembro. Apagaram o coitado por mais de 30 dias consecutivos, levantando-o para comer e trocar a ceroula pesada de bosta. O que fazer num lugar que não se pode fugir, não se pode rebelar-se, tampouco usar o banheiro sem ser vigiado, sem mencionar as surras frequentes? A resposta foi comer todas as plantas que encontramos pelo caminho, e tomar inseticida para aliviar nossos sôfregos corações de tanta truculência. Todavia, nada além de uma torrente de vômitos, uma tremenda dor de barriga, e mais punições foi obtido com tão extrema medida. Era preferível, e ainda é, prestar vassalagem à morte do que ser subserviente desses verdugos sádicos e inclementes.

Se os pais realmente creem que seria melhor colocar os filhos dentro desses centros de concentração nazistas, que em pleno século XXI usam de posturas medievais para fazer cumprir a lei, desculpem- me, mas não sabem o que pensam. Consideram-se os sabichões, os vividos, só porque trabalharam toda a vida para sustentar os filhos, ou porque fizeram uma mísera faculdade, dando ibope para o academicismo. Para tais justiceiros, farei as de Thoreau minhas palavras: “Idade não é documento e os jovens podem ser tão qualificados quanto os velhos, já que estes perderam mais do que ganharam. Pode-se inclusive duvidar que o mais sábio dos homens tenha aprendido com a vida algo de real valor. Na prática, os velhos não têm conselhos muito importantes a dar aos jovens, a experiência deles sendo parcial e suas vidas míseros fracassos que procuram justificar, além da possibilidade de que lhes reste alguma fé que contradiga toda a experiência, e que, somando tudo, sejam apenas um pouco menos jovens do que já foram um dia. Há mais de trinta anos que vivo neste planeta e ainda estou por ouvir uma palavrinha que seja, de valor, ou um conselho razoável vindo de meus superiores. Nunca me disseram nada e provavelmente não podem me dizer nada que valha a pena.”

Prossigamos... A tirania não é o único forte de tais clínicas. O desdém com a saúde humana e a falta de ética também se fizeram presentes. Narrar-vos-ei o que houve: havia um veterinário, chamado Ivan, que estava lá por beber três latinhas de cerveja. Este homem, de bom caráter, inteligente e de extrema honradez, misturava-se em meio aquela súcia de matadores, bandidos, loucos e comedores de fezes. Parecia um homem de grande conhecimento em sua área de atuação, e talvez tenha sido, devido ao tédio, que ele se propôs a cometer umas das maiores sandices que já vi na vida: operar as verrugas do japonês de cara preta; retirar uma bala de 38 alojada na barriga de outro monitor; e fazer a circuncisão em dois outros internos, que acreditem ou não, solicitaram a cirurgia. Todos os procedimentos seriam algo simples e indignos de serem comentados, caso não fossem empreendidos por um veterinário, usando um único bisturi, ainda por cima, sujo de sangue, pois nem um álcool os desgraçados tiveram coragem de passar na lâmina avermelhada. Sorte que na tenra idade de catorze anos, já tinha o bom senso de saber que devia passar longe daquela lâmina, manuseada a mando de homens cuja loucura era o atributo marcante. Toda a trama é demasiada longa para ser narrada em míseras páginas, e por isso, tomei a resolução de escrever um livro romanceado para narrar todos os detalhes, e expor a realidade que foge aos olhos da sociedade, a fim de dissuadir todos que pensam ser de utilidade o uso de clínicas involuntárias para o tratamento da adicção. Nos dias de hoje, não faço o uso de nenhuma droga ilícita, assim como não consumo tabaco, e se bebo, é raramente. A vida nos ensina muito, ensinou-me que a sacralidade do corpo deve ser respeitada. Cheguei a tal conclusão observando com diligência o final daqueles que não prezam a saúde, que vão aos fast-foods, que abusam dos alimentos processados, e principalmente dos que fazem o uso de substâncias ilegais, perniciosas e deletérias a saúde. Devo isso às Nornas, fiandeiras do destino, e principalmente à mim, pois com a clínica, apenas ganhei, ou devo dizer, perdi a inocência interior, a confiança nas pessoas e empederni meu coração. Talvez haja um lado bom de tudo isso; afinal, nada, por mais hórrido que possa ser, me assombra nesta vida.

UM VIKING DE ÓCULOS PERFIL DOIS
Enviado por UM VIKING DE ÓCULOS PERFIL DOIS em 06/12/2013
Reeditado em 12/06/2019
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