Revistinha

Extremas dificuldades financeiras fazem as pessoas se comportarem de forma diferente da sua natureza. Meu pai tem um coração generoso demais, porém na época em que passávamos necessidades humilhantes, a impressão que eu tinha dele era de uma pessoa muito cruel.

Quando eu tinha meus nove anos de idade, ele trabalhava no Mercado Municipal, ajudando meu tio em uma banca de verduras e legumes. Eu gostava quando às vezes minha mãe precisava ir ao centro da cidade e me deixava lá no mercado com meu pai, enquanto resolvia suas coisas.

Gostava porque era sair da rotina, era ver coisas e pessoas diferentes. Pois meu pai, sempre calado, não ficava conversando comigo. E eu não me sentia à vontade para ficar fazendo perguntas. Já tinha a experiência de receber respostas curtas, monossilábicas, pouco esclarecedoras e que não davam a mínima abertura para continuar ou iniciar qualquer assunto.

Então eu ficava andando, vendo as pessoas trabalharem, observando os ricos fazendo suas compras.

Naturalmente, a banca que mais me chamava atenção era a de revistas! Diversas publicações expostas, penduradas umas nas outras por grandes prendedores, e outras tantas empilhadas. Revistas de tudo quanto era tipo! Lembro-me perfeitamente ainda hoje! Eu ficava só olhando, sem tocar, supondo que não pudessem ser folheadas.

Quando eu era criança, eu tinha muito medo de broncas. Eu recebia muitas broncas. A maioria delas, eu não sabia exatamente o motivo. Nunca tive chance de me explicar. Cresci ouvindo que “não podia”, que “era minha culpa”, que “eu não sabia”. E tinha que ficar quieto. Ouvindo longos sermões. Hoje entendo que de fato eram broncas gratuitas, originadas do mau humor vindo da pobreza. Sei agora que eu era um bom filho.

Eu era consciente da dificuldade financeira da minha família. Não era uma criança do tipo que pedia brinquedos apesar de ver que não havia nem comida suficiente e satisfatória em casa. Então, poder “olhar” as revistas, sem abri-las ou lê-las era o que estava dentro das minhas possibilidades.

Eram muitas... Fui ficando apaixonado. Era ruim ficar com o pescoço torto lendo as capas. E ficava meio constrangido com a proprietária da banca toda hora indo lá fora me fiscalizar. Já havia me perguntado mais de uma vez “pois não?”. Eu só tinha a resposta: “só estou dando uma olhada...”. Mas ela não me disse “fique à vontade”, não.

A vontade de ter uma revista em minhas mãos, lê-la todinha, tê-la só para mim foi me seduzindo demais. Eu nunca tinha lido uma revista novinha. Nesta idade eu já adorava ler. Pegava um livro atrás do outro na biblioteca pública. Porém, revista não...

Eu não tinha sequer uma moeda no bolso. E a costumeira cara séria do meu pai era pouco convidativa para mesmo uma remota tentativa...

Saí da banca de revistas em direção à que ele trabalhava. Fui reunindo coragem enquanto percorria o longo corredor do Mercadão. Quando cheguei e o vi ocupado, atendendo, perdi a coragem. Continuei dando voltas. Andei muito. Voltei às revistas.

Olhei o preço de cada uma delas, minuciosamente. Procurei a mais barata de todas. Era uma revistinha infantil, com estorinhas. Pedir dinheiro ao meu pai poderia acarretar mais broncas. Era um risco. Eu já sabia que as broncas vinham à toa. Já tinha ouvido um longo e dolorido “discurso” quando, por exemplo, eu havia acabado de jantar e disse que continuava com fome...

Entretanto, preferi tentar. Já estava na ponta da língua o que eu diria se meu pai viesse com sermão: “tá bom, pai, tá bom, não precisa não”.

Refiz o longo caminho do corredor. Concentração no objetivo. Coração palpitante, apreensivo. Planejei as palavras e até o tom de voz. Encontrei meu pai desocupado: “Pai... queria comprar uma revistinha...”. E ele: “quanto é essa revistinha?”. Falei o preço e ele respondeu apenas: “que revistinha cara, hein”. E continuou arrumando os legumes na banca.

Não me deu bronca, nem o dinheiro e muito menos atenção. Preferi continuar olhando outros produtos do Mercado e terminar o meu namoro com as revistas.

(Catalão, 28/10/2013)

Hélio Fuchigami
Enviado por Hélio Fuchigami em 30/10/2013
Reeditado em 30/10/2013
Código do texto: T4548483
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