SONS, PERFUMES E MEMÓRIA
Estou envelhecendo.
Tenho me sentido cada vez mais saudosista.
São as circunstâncias, nas coisas da vida, que ninguém está sujeito a fugir.
É quando os dias que se acumulam na memória,
e ao contrário de afastar as lembranças de nossa infância e juventude, mais nos aproximam delas.
Agora entendo T. S. Eliot quando diz que o fim de toda investigação é conhecer o lugar (ponto de partida) pela primeira vez.
É esse amadurecer que reaviva e elucida os momentos inesquecíveis de conquista de nossa individualidade.
Um perfume, uma música, há muito guardada no recôndido cadinho do ser,
que quando ouvidas ou sentidas,
despertam velhas lembranças e emoções, trazendo à boca gostinhos de saudades,
nostalgias que lacrimejam os olhos,
como quem sinceramente pede ou oferece perdão à vida e a si próprio.
Perfumes e músicas em nossos sentidos demarcam momentos que se tornaram terrenos cercados de indulgências e cicatrizes,
ingredientes que imiscuem-se em nossas reminiscências e a elas vão dando sentido e sabor nesse aprendizado espontâneo de erros e acertos que é o viver.
Bom seria se toda lembrança não fosse necessariamente dolorosa; mas o recordar é assim,
não nos engana, é antes a democracia do coração, reafirmando nossa humanidade real e imaginária.
Mas as melodias e odores também trazem a dor maior do amadurecer:
ver sua banda predileta desfeita ou esquecida, e seus vocalistas, rebeldes de uma época,
hoje nos "enta" ou morrendo de males que atacam no envelhecer.
Meu mundo está esvaziando-se dos modelos de perfumes, poetas, compositores, cantores, músicos, atores e atrizes que povoaram minha infância e juventude com suas artes.
Vinícius de Moraes, Tom Jobim, Drummond, Fred Mercury, Cecilia Meireles, Rachel de Queiroz, João Gilberto, Shirley Horn, Gonzaguinha, entre outros e mais recentemente, o italiano Sergio Endrigo, insistem em deixar-me, aos quarenta, órfão de ídolos um dia cultivados.
Com eles, familiares e velhos amigos velhos (em minha juventude, sempre mais velhos que eu) morrendo, fragrâncias em desuso, casas ruindo, ruas sendo asfaltadas, telefones desbotando na velha agenda...,
tenho tomado cada vez mais consciência do que venha a ser a finitude humana e das coisas.
Por isso nunca mais reli "Cem anos de solidão" de Gabriel G. Márquez. Foi minha primeira ciência do ciclo da vida.
Eu, que era tão inocente...
Talvez minha percepção, afetada pela sensibilidade de um tolo romântico (como me acusara um dia alguém que amei), ande um tanto quanto seletiva e vívida pela falta de coisas boas nos dias atuais .
Já começo a ter a impressão de que antes de viver, é estar sobrevivendo a tantas porcarias nas TVs e rádios.
Sobrevivendo como velho portão que resistiu aos inúmeros abrir e fechar,
como Mário Lago, que firmou um "pacto de coexistência com o tempo, nem ele me persegue, nem eu fujo dele...".
Buscar beleza no tempo presente misturado a um passado de sons, perfumes e memória, e ver seus ídolos que ainda vivem, são a prova (ainda) viva de que meus dias ainda serão repletos de sons.
Bons sons.
De que músicas, assim como alguns cantores, ainda não são descartáveis.
Me dirão "mas ainda há boas músicas e cantores bons e jovens",
Ainda há novos perfumes para se sentir! dirão até.
Graças a Deus! Senão o que teriam para recordar nos seus "enta", daqui a vinte anos,
os que hoje têm vinte?
Daniel Viveiros®